Saúl Dias pseudónimo como poeta de Júlio Maria dos Reis Pereira (1903-1983), irmão de José Régio, viu a sua obra como poeta ficar escondida na sombra gigantesca do irmão, sobressaindo a sua obra plástica. Nesta (assinada Júlio) há, sobretudo nas aguarelas e desenhos, uma magia e um quase pudor que desencadeia uma imensa ternura. Não assim nos óleos até aos trinta anos onde a crueza do mundo, na agressividade do colorido se impõe.
É na linha desta pintura onde a magia dos desenhos e aguarelas espreita, o poema Café, de 1934 suponho, que mais à frente transcrevo.
as garrafas dos álcoois e absintos,
em garbos áticos,
oferedam viáticos…
sonha-se o amor:
E ela vem sempre /como naquela hora / estranha, delicada / e debruada a encanto.
Café
Quando,
à hora do Jazz,
a minha cabeça rola
pelo tecto pintado do café.
a parede em frente é uma visão de escola
onde um menino de bibe e gola
sonha com aquilo que não é.
E até os criados
têm ares purificados
como ascetas dum branco ritual.
E os mármores das mesas,
Com desenhos obscenos,
surdinam várias rezas…
E as garrafas dos álcoois e absintos,
em garbos áticos,
oferedam viáticos…
E há toalhas brancas e há velas acesas!
E ela vem sempre
(só a cabeça dela,
que o corpo
perdeu-o, porventura,
nalgum escuro quarto de aluguer).
Ela vem sempre,
Como naquele dia,
serena e amavia,
única e excepcional.
O pianista
comeu os dentes do piano
e canta, de pernas para o ar,
uma canção azul.
O violinista adormeceu de pé numa cadeira
e o violino dá som sem ninguém lhe tocar.
E ela vem sempre
como naquela hora
estranha, delicada
e debruada a encanto.
Pura como a água, suave como um manto.
O dia é Dia Santo…
Termino com uma pequena amostra da pintura de Júlio (dos Reis Pereira) onde ora a influência de Chagall ora a influência de George Grosz se observa.
A qualidade e resolução das imagens é a possível entre o material que circula na net, e infelizmente é muito baixa.
Há tanta metafísica à solta num café, tanto quotidiano mergulhado em abismos de penúria. Obrigado por trazer da amnésia colectiva em que vivemos hoje em Portugal, estes rasgões iluminados de poetas que hoje só são penumbra e poeira. E o Saúl Dias ainda mais, transformado que foi em sombra menor do irmão. E este poema tem o vinco de um pintor, de alguém que usa as palavras como pincéis de tinta!
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