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Pessoa amiga sugeria-me que hoje, a pretexto do dia do livro infantil, aqui trouxesse a poesia que mais me tocou na infância. Ela já está algures no blog: foi o poema popular Nau Catrineta.
Nesta pausa da Páscoa passeava em Tavira, minha cidade natal, e reencontrei um condiscípulo de escola primária, básica chama-se hoje, que nunca mais vira, e em verdade, não consigo trazer à memória qualquer recordação que o relacione. Foi um encontro gratificante e, simultaneamente, embaraçoso, pelo carácter admirativo de que se revestiu, e tenho pudor de contar.
Como já aqui rememorei, aprendi a ler, escrever e contar aos 3 anos, e chegado à escola oficial com seis anos, encontrei cerca de trinta rapazes com sete anos e mais, para quem este mundo de ler e escrever era uma novidade absoluta. Foi fácil ganhar um ascendente e uma aura de prodígio, que já esquecera, e agora reencontrei.
Saber ler é um poder considerável do qual hoje não há, felizmente, vestígios. A generalização da aprendizagem disso se encarregou. Não foi sempre assim, e no Portugal até 1974 o analfabetismo era uma terrível realidade.
É dessa realidade que fala o poema O Edital de Augusto Gil (1873-1929) que acabei por escolher para de algum modo sinalizar este dia do livro infantil.
O Edital
Manuel era um petiz de palmo e meio
(ou pouco mais teria na verdade),
de rosto moreninho e olhar cheio
de inteligente e enérgica bondade.
Orgulhava-se dele o professor…
No porte e no saber era o primeiro.
Lia nos livros que nem um doutor,
fazia contas que nem um banqueiro…
Ora uma vez ia o Manuel passando
junto ao adro da igreja. Aproximou-se
e viu à porta principal um bando
de homens a olhar o quer que fosse.
Empurravam-se todos em tropel,
ansiosos por saberem, cada qual,
o que vinha a dizer certo papel
pregado com obreias no portal…
“Mais contribuições!” – supunha um.
“É pràs sortes, talvez” … outro volvia.
Quantas suposições! Porém, nenhum
sabia ao certo o que o papel dizia.
Nenhum (e eram vinte os assistentes)
sabia ler aqueles riscos pretos.
Vinte homens e talvez inteligentes,
mas todos – que tristeza analfabetos!…
Furou Manuel por entre aquela gente
ansiosa, comprimida, amalgamada,
como uma formiguinha diligente
por um maciço de erva emaranhada.
Furou, e conseguiu chegar adiante.
Ergueu-se nos pezitos para ver;
mas o edital estava tão distante,
lá tanto em cima, que o não pôde ler.
Um dos do bando agarrou-o então
e levantou-o com as mãos possantes
e calejadas de cavarem pão…
Houve um silêncio entre os circunstantes.
E numa clara voz melodiosa
a alegre e insinuante criancinha
pôs-se a dizer àquela gente ansiosa
correntemente o que o edital continha.
Regressava o abade do passal
a caminho da sua moradia.
Como era já idoso e via mal,
acercou-se para ver o que haveria…
E deparou com esse quadro lindo
duma criança a ler a homens feitos,
dum pequenino cérebro espargindo
luz naqueles cérebros imperfeitos…
Transpareceu no rosto ao bom abade
um doce e espiritual contentamento,
e a sua boca, fonte de verdade,
disse estas frases com um brando acento:
Olhai, amigos, quanto pode o ensino…
Alguns de vós são pais, outros avós,
pois só por saber ler, este menino
— É já maior do que nenhum de vós!
O poema integra o livro VERSOS, publicado em 1898. Transcrevi a versão da 5ª edição,
Ilustra o artigo uma iluminura da construção da Torre de Babel, de Mestre do Duque de Bedford, c. 1423.
“E era toda a terra de uma mesma língua, e de uma mesma fala” Génesis 11:1
Falar de analfabetismo em 1974 é pura ingenuidade. Os poucos analfabetos que sobreviam eram avôs ou bisavôs nascidos na era monárquica ou inícios da primeira república. Augusto Gil se expressa segundo a história de seu tempo. O poema “O Edital” já constava do livro da quarta classe de edição de 1951, como um alerta do Estado Novo à instrução primária obrigatória vigente.
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