Embora escreva todos os dias, nem sempre a conjuntura (dos astros, será?), se mostra favorável a um resultado convincente. E assim esta D. Joaninha permaneceu em tosco mais de quatro anos até que um destes domingos de manhã se esclareceu.
Deixo à imaginação do leitor o detalhe da vida da D. Joaninha, quem era aquele homem, pai da D. Maria, e a D. Maria até que ponto percebia ou não o que se passava com as conversas de que nos fala.
Eventualmente talvez outro domingo traga a iluminação de tão candente assunto.
Aí tendes, pois, uma pequena amostra da história da D. Joaninha da farmácia.
Levantou-se e desceu com alguma dificuldade da cama alta. Franzina, cabelo grisalho claro, pegou no robe e vestiu-o. Aproximou-se da janela.
– Ah! Finalmente um dia bonito, disse, dirigindo-se a ninguém em particular mas olhando para as camas em frente:
– As senhoras entraram durante a noite com certeza, perguntou:
– Sim, a senhora dormia, e esta senhora aqui ao lado entrou mais tarde, respondeu uma das doentes acamadas.
Era uma manhã fria e límpida de um domingo de Janeiro. Lá fora começavam a chegar os visitantes. Famílias, crianças, pessoas sozinhas, juntavam-se à entrada aguardando a hora do inicio das visitas.
Olhando pela janela e perscrutando a pequena multidão que se aglomerava junto à entrada do pavilhão do hospital, num misto de ansiedade e alegria, disse para si a meia voz:
– Não vejo ainda a minha sobrinha. Mas certamente virá!
Virando-se para a cama em frente e observando atentamente a doente ali deitada:
– As feições da senhora não me são estranhas mas não tenho nenhuma ideia de a conhecer.
– Sou de Vila Real.
-Ah! Eu sou de S.Brás, então devo estar a fazer confusão.
Afastou-se da janela e junto à cama pegou numa maleta e dirigiu-se para a casa de banho.
Teria à volta de noventa anos. Muito direita, seca de carnes, tentava manter o porte ao caminhar, arrastando ligeiramente os pés.
– Precisa de ajuda para se arranjar? Perguntou a empregada que entretanto entrou.
– Não obrigado. Consigo desenvencilhar-me sozinha.
– Nem parece ter a idade que tem. Todos estes dias esteve sempre bem disposta e simpática, comentou a empregada dirigindo-se para uma das camas ocupadas.
Virando-se na cama e falando para o lado, com alguma surpresa e estupefação na voz, a D. Maria comentou:
– Quando ela disse que a minha cara não lhe era estranha e era de S. Brás andei para trás mais de sessenta anos. E não contendo a impaciência começou a contar:
– Éramos nós pequenas e saiamos ao domingo, a minha irmã e eu, depois do almoço, a passear de carro com o pai. A avó, com quem vivíamos, nunca ía. Agoniava ao andar de automóvel, dizia. Invariavelmente, durante muito tempo, fomos a S. Brás. Brincávamos no jardim público. O pai deixava-nos a brincar, atravessava a rua, entrava na farmácia e ficava lá a tarde inteira. Às vezes uma de nós corria, e entrava na farmácia. Só raramente é que lá estava, atrás do balcão, o pai da D. Joaninha, o farmacêutico, com uns bigodões de fazer fugir. Normalmente estava nos fundos, no laboratório cheio de frascos esquisitos de onde nem nos podiamos aproximar. Sentados lado a lado, num canto a seguir à montra, o pai e a D. Joaninha, esta senhora, conversavam. Ao ver uma de nós dizia:
– Olá menina que crescida está. Quer um rebuçado de mentol? É bom para a garganta.
Levantava a tampa de enorme frasco de vidro pousado sobre a mesa entre os dois, tirava uma mão cheia de rebuçados enrolados em prata e dava-nos:
– Tome lá menina. É para si e para a mana.
Quando entardecia o pai saía da farmácia, a D. Joaninha vinha até à porta, o pai despedia-se com um aceno da D. Joaninha e voltávamos para casa.
Até ir para o liceu estes foram os passeios de domingo. Depois, nós já crescidas, eu e a mana, éramos gémeas, passávamos os domingos de outra maneira e não mais soubemos desta senhora.
Há já muitos anos alguém em conversa, falando do filho que se tinha mudado para S. Brás e lá vivia, por acaso comentou que a D. Joaninha continuava na farmácia tão bonita quanto em rapariga e nunca tinha casado.
Voltou da casa de banho. Toalete feita, cabelo penteado, um rasto de perfume. Com um ar prazenteiro disse para as senhoras em frente:
– Hoje espero ter alta. Vim fazer um exame à vesícula e já cá estou há oito dias.
– As senhoras que aqui estão entraram esta noite com o mesmo problema respondeu-lhe a empregada, e continuou:
– suponho que o médico já assinou a alta da senhora, foi o que me pareceu ouvir a senhora enfermeira dizer há pouco.
Tocou o telemóvel.
– Estou! Ah és tu Luisinha.
-….
– Sim, devo ter alta hoje.
– …
– Sim, e não te esquecas, traz-me a saia azul e a blusa vermelha.
E desligou.