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Alguns poetas relataram dolorosas experiências de hospital, e estou a lembrar-me (e não por acaso) de Manuel António Pina, assim também Vitorino Nemésio (1901-1978).

Em Limite de Idade, livro atípico na obra do poeta, onde sarcasmo e non-sense se namoram, encontramos uma declaração de amor à bactéria que o atormenta Escherichia Coli de seu nome.

Parodiando notáveis poemas de amor, de Dante a Álvaro de Campos, passando por Antero de Quental, temos uma bem disposta reflexão sobre os males do corpo e como olhá-los com bonomia. A idade do poeta terá contribuído para tão serena e bem-humorada reflexão, primeiro em torno da Escherichia e depois à roda da Keratina.

Aí ficam os poemas. Noutra oportunidade iremos a outras zonas desta fascinante e diversificada obra poética.

Escherichia

I
Mandei fazer o electrocardiograma
À minha “Beatriz de mão gelada”:
Mas fui eu, fui eu só que fui à cama,
Eu, claro! não Beatriz, nem Dante, eu nada!


“Mas única Beatriz consoladora”
Então não era a Morte reservada
A quem tem coração pela vida fora
E por ele sobe em hélice aminada?


Em gráfico de sismo a sina veio
Nessa foto cardíaca: – “Receio
Que morra, Daisy!” Não:”Que morra, Dolly!”


Pois eu não sou o Fernando Pessoa
Ou Antero, nem em inglês seu nome soa,
Que minha Musa é Escherichia Coli.

II
Escherichia ou Beatriz, que importa o nome
Se ambos me soam igualmente belos?
A prometida morte nos consome
Como flor prometida nos carpelos.


Assim tu, Escherichia, és meu tormento
E nocturno tremor, Beatriz funérea!
Quem nasceu para casto fingimento
Afinal pode amar uma bactéria.

III
Pego em Escherichia ao colo,
Musa micrónica, etérea,
Mas não já de éter sulfúrico
Senão feminil bactéria.
Por ela todo estremeço
Em suor e ácido úrico!

 

KERATINA

Não há projecto no dejecto
E o castelo de moscas o assimila!
Em horas, uma dúzia de ovos
Dá milhares de asas verdes:
Assim a keratina da menina,
Além das unhas róseas
Dá-lhe uma touca de oiro.
Eu amo, não a Rosa
– Cabeleira ou Corina –
Mas o lento caminho aminoácido,
A molécula plástica e feminina
Que não me engana ou perde.
Eu amo a mosca verde
E – mais precisamente – a keratina.

Embora a minha vontade fosse continuar a transcrição de mais saborosos exercícios poéticos, termino com a séria reflexão em forma brincada sobre aquela ante-câmara da morte que a anestesia pode ser:

CA-DÁ-VER

Estendo-me na morte,
Ainda em lençóis de vida:
As enzimas alerta,
A catálise certa
Na carne arrependida.
Preparo-me sangrando
Só na circulação:
Bate a ritmo brando
Meu áspero coração.
E assim, como um adeus,
Os neurones cintilam
Como a luz interior
De que meus olhos brilham.
Saberei no disperso
Do ácido aminado
Que a rima do meu verso
Diz amor
Acabado:


Ca-dá-ver …
Até ver
Se sou ressuscitado.

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