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O único propósito pelo qual o poder pode ser exercido rectamente sobre um qualquer membro de uma comunidade, contra sua vontade, é como forma de prevenir danos sobre outrem

Sobre si próprio, sobre o seu próprio corpo ou mente, o individuo é soberano.

Apenas há pouco mais de 150 anos foi a ideia de liberdade formulada nestes termos, e foi John Stuart Mill quem a organizou na forma filosófica em que hoje a discutimos.

Publicado em 1859, On Liberty não mais deixou de interrogar os homens confrontando-os com os valores morais que legitimam o ser humano.

No entanto, antes desta notável organização argumentativa, o conceito apresentava-se difuso e dificilmente articulável entre a esfera pessoal, a esfera social, o individuo e o colectivo.

Reflexo desta debilidade conceptual é o poema que hoje escolhi.

A geração que viveu a juventude na primeira metade do século XIX em Portugal, conheceu, vividos ou por memória próxima, os conturbados 50 anos entre as invasões francesas e o triunfo final do constitucionalismo.

Nesta viragem do mundo antigo para uma sociedade nova, triunfou literariamente o romantismo.

Nos seus propósitos de incorporar uma identidade nacional e construir uma linguagem artistica próximo do povo, surgiram criações poéticas despidas de sofisticação conceptual ou de linguagem, mas onde, ainda hoje, encontramos uma saborosa atmosfera de simplicidade.

A versificação aproximou-se das fórmulas populares, os assuntos retomaram a ingenuidade dos romances contados à lareira, a rima procurou-se sonora, e o resultado faz com que a leitura flua. Lidos sem preconceitos de escola ou ideologia, muitos destes poemas proporcionam ao amante de poesia genuinos momentos de prazer.

Em Liberdade, por qualquer padrão uma poesia menor, o atabalhoado dos conceitos e a cadência das imagens, escolhidos com um propósito de metrificação, acaba por nos revelar um jovem a quem a eloquência poética faltou, mas onde o confuso conceito de liberdade espreita para dominar a vida adulta.

Liberdade

Liberdade, nome santo,

Meu primeiro, doce canto,

Minha sacra inspiração,

Nome em glória e sangue imerso,

Que eu ouvia inda no berço

Pronunciar com devoção.

 

Liberdade, eco bendito,

Doce sonho do proscrito,

Do cativo entre grilhões,

Doce sonho d’esperança,

Sonho, às vezes de vingança

Nesta quadra de traições.

 

Mega estrela d’almo[i] alento

Baptizada em mar sangrento,

Ora envolta em claro véu,

Ora pálida, amarela,

Como a lâmpada, que vela

Junto à cruz do mausoléu.

 

Sonho, estrela, nome ou canto,

Que os mortais adoram tanto,

Que adorado sempre tem,

Que adorou já Roma e Grécia,

Que pregou Bruto e Lucrécia,

E o senhor nado em Belém.

 

Liberdade, virgem linda,

– Virgem sim, que ousado ainda

O mortal te não gosou,

– Eu te adoro, ó liberdade,

Como Deus ama a verdade,

Como Cristo a Deus amou.

 

Eu te adoro, virgem bela,

Como a noite adora a estrela,

Como o aflito as solidões,

Como Newton o infinito,

– Como a patria ama o proscrito,

Como a pátria amou Camões;

 

Como a mãe adora o filho,

Como a flor da aurora o brilho,

Como a luz da aurora a flor,

Como o árabe o deserto,

O pirata o mar incerto,

De que é rei, de que é senhor.

 

Adorei-te, ó liberdade,

Quando em frágil, terna idade

– Deus e mãe – balbuciei,

Quando a mãe – Deus – me dizia;

Quando infante eu não sabia

Vã ciência que hoje sei.

 

Quando vi a vez primeira

Vir bater, bater na beira

Livre a onda, livre o mar:

Quando rir, farto e contente,

Vi o rico, e o indigente

Pedir pão e soluçar.

 

Quando após calmoso dia

Ia só, cismar eu ia

Sonhos vãos, doces visões:

Quando negra estava a noite,

Quando o vento era um acoite,

Dando voz às solidões.

 

Quando a meiga donzela,

Mais que o sol, que a aurora bela,

Quando a vez primeira amei,

Quando tive um vão desejo,

Quando quis furtar-lhe um beijo,

Quando ingrata lhe chamei.

 

Quando vi seu riso brando,

Suas lágrimas e quando

Pranto e risos lhe volvi:

Quando em tardes d’almo estio

Fui sentar-me ao pé do rio

No país onde nasci.

 

No murmúrio da corrente,

No raiar do sol ardente,

Nos vãos sonhos que eu sonhei,

No fragor da tempestade,

Sempre, sempre, ó liberdade,

Sempre, sempre, te adorei.

 

Nos sorrisos da donzela,

No fulgir da pura estrela,

Nos rocios[ii] da manhã,

No tugúrio que defeca,

No cair da folha seca,

No pairar da sombra vã.

 

No som do ermo campanário,

Que flutua ao sôpro vário

Da ligeira viração,

No rezar das preces santas,

No tufão que açoita as plantas,

No som rouco do trovão.

 

Liberdade, a luta imensa

Que revolve o mundo, é crença

Na tua santa, eterna lei;

Quando a terra, o céu divino,

Soltam juntos o teu hino,

O teu hino eu cantarei.

 

O clamor da humanidade

Diz bem alto – Liberdade,

Como a brisa, o vento, a flor.

Minha voz não é tão forte,

Mas serei até à morte,

Liberdade, o teu cantor.

 

O autor do poema foi A de Serpa (António de Serpa Pimentel (1825 – 1900)  membro do grupo de O Trovador. Nasceu em Coimbra, onde estudou matemática. Foi professor da Escola Politécnica, chefe do Partido Regenerador a seguir à morte de Fontes Pereira de Melo, ministro de várias pastas e chefe do governo formado na sequência do Ultimatum Inglês de 1890.

Como nota de actualidade refiro que o nosso poeta, enquanto politico activo a partir da queda de Costa Cabral em 1851, teve a iniciativa de propôr a criação da Caixa Geral de Depósitos em meados da década de 70.

Os seus poemas foram reunidos em Poesias (1851).

Este poema Liberdade foi publicado em 1849 a abrir o livro COLLECÇÃO DE POESIAS, com poemas de vários jovens autores, numa edição da Imprensa Nacional.


[i] criador

[ii] orvalho