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Redondilha
Sobre os rios e ribeiros
Que por esses vales vão,
Pus um barco de papel.
Os desejos vogam nele,
Que as palavras essas não.
E quando as águas encontram
As suas irmãs do mar
E se misturam, aos beijos,
Vão para o fundo os desejos
As penas sobem ao ar.
Desejo, dor e saudade
São companheiros. Depois
Morre primeiro o primeiro,
Ainda ás vezes solteiro,
Ficam só os outros dois.
“… graças à arte requintada com que trabalha o verso, Cabral do Nascimento atinge em muitas das suas composições uma simplicidade, uma sageza, um desencanto, um doloroso fruir dos efémeros frutos da vida, características que lhe dão o direito a que o consideremos um dos mais altos poetas da sua geração.” João Gaspar Simões dixit.
Poeta raro, ausente do barulho da fama, a sua obra é de um inexcedível prazer de leitura.
Esta é uma pequena escolha retirada de Cancioneiro, talvez o seu mais perfeito livro juntamente com Fábulas.
Tenhamos presente que o livro Cancioneiro foi publicado em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, e os poemas que seguem ganham um significado acrescido.
Futuro
O que há-de vir é belo
(Pensamos). Belo e ardente.
Fosse o futuro assim!
Pudesse agora tê-lo!
Agora, – e o Presente
Deixá-lo para o fim.
O dia de amanhã?
Ilusão. Frioleiras.
Pois bem: quem o tivera
Já gasto em cinza vã,
Em vez de, à sua espera,
Ficar a vida inteira!
Amanhã: dia de hoje
Que não chegou ainda.
Seja! Mas foge
A vida, antes que venha!
A sua face é linda.
Pena que se detenha.
Há-de vir, certamente,
Daqui a muitos anos.
Todavia no mundo
Só haverá presente.
Enganos. Desenganos.
Um silencio profundo.
Dia tão indeciso,
Tão cheio de mistério!
Virá pelo Outono,
Quando não for preciso,
Acordar-me do sono,
Talvez no cemitério.
Na singeleza da forma, que admirável reflexão sobre um amanhã tão sem esperança como o hoje, ou como o poeta o define: “Amanhã: dia de hoje / Que não chegou ainda.”
E todavia sonha: “O que há-de vir é belo / (Pensamos). Belo e ardente. / Fosse o futuro assim! / Pudesse agora tê-lo!”.
Prossegue a reflexão até concluir no desalento de um presente com o sonho bloqueado, que o futuro: “ Virá pelo Outono, / Quando não for preciso, / Acordar-me do sono, / Talvez no cemitério.”
Canção a meia voz
A minha vida é sempre ontem
E o meu desejo, amanhã.
Hoje é uma coisa parada.
Nada sei nem faço nada.
Certeza é palavra vã.
Não sou. Ou fui ou serei.
Se ao menos tivesse fé!
Corro atrás duma quimera.
Ou então fico-me à espera,
Porém à espera de quê?
Porque abri as minhas mãos
E deixei fugir o instante
Que havia nelas ainda?
Agora o nada não finda
E o tudo é sempre distante!
Virás tu ao meu encontro,
Ou sou eu que devo achar-te?
Quem pudera descansar!
Ver, ouvir e não pensar!
Ser aqui e em toda a parte!
Chego tarde ou muito cedo.
Ou paro aquém ou além.
Houvesse algo para mim
Sem ter principio nem fim,
Sem ser o mal nem o bem!
A dúvida de si, em que todos, mais ou menos, nos embrulhamos tantas vezes, ganha aqui a exemplaridade da sua enunciação “Corro atrás duma quimera. / Ou então fico-me à espera, Porém à espera de quê?”
Depois de olhar para si e ter sonhado o futuro, o poeta olhou o mundo, e como o viu nos relata:
Programa
Ópio: o trabalho, a dor, o riso, e este
Livro que me empolga!
O teatro, o jornal, o amor e o resto…
Ópio de toda a hora.
Matar o tempo, reduzi-lo a pó,
Assim, anos e anos?
Ele a vida nos leva e nos consome,
Ele fica e nós vamos.
Renova-se: é Verão, Outono, Inverno
E Primavera! Vê-se
Quanto de nosso fim já somos perto…
Ele, volta ao começo.
A vida, só vivê-la
Sem rumo, como um corpo sobre as ondas…
Para gozá-la é breve,
Para sofrê-la é ainda mais longa.
Teatro
Era uma vez um menino
Em seu jardim a brincar.
(Brincar, brincar, não brincava,
Sempre, sempre a meditar!)
Os outros vinham de longe
E a correr, para o levar.
(Correr, correr, não corria,
Porém ficava a cismar).
Na tarde de oiro se ouviam
Seus gritos enchendo o ar.
(Ele gritar não gritava,
Mas calava-se a pensar).
O mundo andava de roda
E tudo em volta a girar!
(Ele, porém, ali estava
Só a ver, a contemplar).
E tudo quanto se via,
E tudo quanto passava,
Nos seus olhos se detinha,
Na sua alma ficava.
Tenho sido espectador
E toda a vida o serei.
Ah, estar de fora da dor,
Aquém do palco do riso,
Longe da arena do mundo!
É insensatez? É juízo?
É bom? É mau? Não no sei.
Mas quanto drama profundo,
Devagar, devagarinho,
Sem voz, sem gesto, sem cor,
Se infiltra tão de mansinho
Na alma do espectador!
Brinquedo
Tenho na minha mão esta esfera de lata,
Este globo terráqueo untado de verniz.
A terra e a água, em linha e cor, tudo relata,
Em letras rubras quantos nomes diz!
A proporção devida, a forma exacta,
Vê-se um palmo diante do nariz.
Linhas de lado a lado, e de alto a baixo (coisa abstracta),
Deus não as fez, o homem é que quis.
Como na estampa antiga dalgum príncipe autocrata,
Guardo o mundo na mão: não sei se sou feliz.
Ah! Quantas voltas hei-de dar assim ao mundo?
Tê-lo a girar… e sucederem rios,
Altas montanhas, mares sem ter fundo,
Continentes ardentes e outros frios.
Pensar que neste circulo rotundo
As caravanas passam, e os navios!
Sucesso grande, a dor mesquinha, o caso imundo…
A uns imaginei-os, e outros vi-os.
Tê-lo a girar… Profundo
Abismo entre o seu ritmo e os meus sonhos vazios!
Gira cansada bola,
Tua ordenada rotação constrói.
De ti se evola
A alma do que é… E eu sinto o aroma do que foi!
Com teu Presente o meu Passado se consola;
Fizeste a chaga e a mim é que ela dói.
Deixa-me ser tão orgulhoso como quem dá uma esmola,
Timido como um herói.
Gira, cansada bola,
Tua ordenada rotação constrói…