Onde está o tempo / em que uma luz, um lar por nós ardia? /
Dá-me a tua mão. / Talvez seja longo este caminho ainda.
Os tempos não vão de feição para optimismos por este Portugal onde o inverno parece instalado para além do calendário, espalhando um frio de alma que demora a expulsar. Maus tempos estes que ecoam num antigo poema de Hermann Hesse (1877-1962) escrito a pretexto de outra circunstâncias, e que hoje evoco.
Maus tempos
Agora nos calamos
E já não mais cantamos.
Nosso passo é pesado.
É a noite, o seu tempo é chegado.
Dá-me a tua mão,
Talvez que seja longo este caminho ainda.
E a neve cai, a neve!
O inverno em terra estranha nunca finda.
Onde está o tempo
em que uma luz, um lar por nós ardia?
Dá-me a tua mão.
Talvez seja longo este caminho ainda.
Tradução de Jorge de Sena, inPoesia do Século XX, Fora do Texto Editora, Coimbra, 1994.
Neste melancólico inverno, depois da tempestade chove de mansinho. Apenas o som do violino permite acreditar que o sol virá na próxima semana.
Encostado a esta melancolia, ouço Bach no mágico violino de Viktoria Mullova. E ao folhear dos livros encontro:
Ah, que tristeza é saber / Que o Belo, o encantador / São só sopro, só tremor, / Que o precioso, o feitiço, / Duram apenas instantes. … As notas da música que mal nascem / Logo fogem, logo expiram, / São só brisa, torrente, perseguição, … O nosso coração entrega-se / Ao que é volátil e fluido. / Entrega-se à vida, …
versos de um poema de Hermann Hesse (1877-1962), que vos deixo.
Escrito na areia [In Sand geschrieben]
Ah, que tristeza é saber Que o Belo, o encantador São só sopro, só tremor, Que o precioso, o feitiço, Duram apenas instantes. Nuvem, flor, bola de sabão, Foguete e riso infantil, Mulher que se vê ao espelho, E muitas mais outras coisas, Que, mal reveladas, se vão, Nao duram mais que um momento, São só perfume, só brisa. E o que perdura, o eterno, Não nos é tão caro à alma: A jóia de fogo frio E os brilhantes lingotes; Até as próprias estrelas, incontáveis, Permanecem distantes, alheias, Não são como nós, mortais. Não chegam ao fundo da alma. Não, o Belo mais íntimo, E o mais precioso, Querido, parece destinado À perdição, sempre prestes a morrer: As notas da música que mal nascem Logo fogem, logo expiram, São só brisa, torrente, perseguição, Derrubadas pela dor, Pois é por pouco tempo Que se deixam apanhar, enfeitiçar; Ainda há pouco tocadas As notas desaparecem, esvaziam-se.
O nosso coração entrega-se Ao que é volátil e fluido. Entrega-se à vida, E não ao sólido, ao concreto. A permanência fatiga, Rocha, estrela, pedraria, Levam-nos constantemente a mudar, Almas de vento, bolas de sabão, Sem tempo, sem duração, Qual orvalho na folha da rosa, Qual namoro de uma ave, Qual morte da nuvenzinha, Brilho da neve, arco-íris, Borboleta a esvoaçar, Qual sonido de risada, Que, enquanto vão passando, Mal nos tocam, não nos prendem, Nem magoam. Amamos O que se nos assemelha, e compreendemos O que o vento escreve na areia.
Segue-se o original alemão do poema, e no final, três ligações: uma onde o poema pode ser ouvido na voz do poeta, e mais duas ligações youtube, possuindo a segunda acompanhamento musical.
In Sand geschrieben
Dass das Schöne und Berückende Nur ein Hauch und Schauer sei, Dass das Köstliche, Entzückende, Holde ohne Dauer sei: Wolke, Blume, Seifenblase, Feuerwerk und Kinderlachen, Frauenblick im Spiegelglase Und viel andre wunderbare Sachen, Dass sie, kaum entdeckt, vergehen, Nur von Augenblickes Dauer, Nur ein Duft und Windeswehen, Ach, wir wissen es mit Trauer, Und das Dauerhafte, Starre Ist uns nicht so innig teuer: Edelstein mit kühlem Feuer, Glänzendschwere Goldesbarre; Selbst die Sterne, nicht zu zählen, Bleiben fern und fremd, sie gleichen Uns Vergänglichen nicht, erreichen Nicht das Innerste der Seelen. Nein, es scheint das innigst Schöne, Liebenswerte dem Verderben Zugeneigt, stets nah dem Sterben, Und das Köstlichste: die Töne Der Musik, die im Entstehen Schon enteilen, schon vergehen, Sind nur Wehen, Strömen, Jagen Und umweht von leiser Trauer, Denn auch nicht auf Herzschlags Dauer Lassen sie sich halten, bannen; Ton um Ton, kaum angeschlagen, Schwindet schon und rinnt von dannen. So ist unser Herz dem Flüchtigen, Ist dem Fließenden, dem Leben Treu und brüderlich ergeben, Nicht dem Festen, Dauertüchtigen. Bald ermüdet uns das Bleibende, Fels und Sternwelt und Juwelen, Uns in ewigem Wandel treibende Wind- und Seifenblasenseelen, Zeitvermählte, Dauerlose, Denen Tau am Blatt der Rose, Denen eines Vogels Werben, Eines Wolkenspieles Sterben, Schneegeflimmer, Regenbogen, Falter, schon hinweg geflogen, Denen eines Lachens Läuten, Das uns im Vorübergehen Kaum gestreift, ein Fest bedeuten Oder wehtun kann. Wir lieben, Was uns gleich ist, und verstehen, Was der Wind in Sand geschrieben.