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A chegada do naturalismo à poesia na década de 70 do século XIX trouxe a prostituição como assunto poético. São muitos os poemas, de qualidade variada, a abordar o assunto. Mas são dois poetas naturais do Brasil, de entre o que conheço, quem, com enorme elegância trata a matéria em poesia. São eles Fontoura Xavier (1856-1922) no soneto Estudo Anatómico, à época publicado numa revista no Brasil e tornado famoso, e Gonçalves Crespo (1846-1883) com o poema Dulce.
Fontoura Xavier (1856-1922)
Estudo anatómico
Entrei no anfiteatro da ciência,
Atraído por mera fantasia,
E aprouve-me estudar anatomia,
Por dar um novo pasto à inteligência.
Discorria com toda a sapiência
O lente numa mesa onde jazia
Uma imóvel matéria, humida e fria,
A que outrora animara humana essência.
Fôra uma meretriz; o rosto belo
Pude timido olhá-lo com respeito
Por entre as negras ondas de cabelo.
A convite do lente, contrafeito,
Rasguei-a com a ponta do escalpelo
E não vi coração dentro do peito!
1876
Rima ABBA ABBA CDC DCD
Gonçalves Crespo (1846-1883)
Dulce
(Imitação)
Vi-a um dia na rua. Flutuante
Ao desdem lhe caía a loura trança;
Como a luz dum farol, essa criança
Levou-me atraz de si… triste bacante!
Era o seu nome Dulce. O povo rude
Apontava-a mofando, quando a via.
Docemente sorrindo, ela dizia:
“Tu sabes que te amei, santa virtude!”
Um dia a quis beijar; fugiu-me triste:
Dulce me chamam, disse, que amargura!
Este corpo que vês, é sanie impura,
Nem mais amargo fel no mundo existe.
“Que torva história a minha! É breve, atende:
Por minha mãe, que a fome alucinava,
Lançada fui no abismo! Então amava…
Hoje sou Dulce, a lama que se vende…”
É verdade que João Penha (1839-1919) no soneto Entre mundanas não fica em desfavor no aplomb com que desenvolve a história e, por outro lado, mostra também ele, a mesma mestria na versificação.
João Penha (1839-1919)
Entre mundanas
– Filha das tristes ervas, nus os pés,
Andrajosa, mas bela de semblante,
Seduziu-me um devasso, um falso amante.
E nada tinha que perder aos dez.
Fui atriz e cantora de cafés,
Mas mudava, indecisa, a cada instante.
Depois, fui o que sou: mundana ovante,
Com trem montado, alto estadão, librés.
Mas tu que eras um anjo, um serafim!
És pois, de quem te queira! Que piedade!
E por quanto te dás? – por um sequim.
-por um sequim em plena mocidade!
De dia e noite uma tarefa assim!
Tu rebaixas a nossa dignidade!
Rima ABBA ABBA CDC DCD
São três perspectivas afastadas sobre o fenómeno social da prostituição. Temos a indiferença distanciada de João Penha enquanto Fontoura Xavier nos dá a perspectiva do anatomista social imbuído da Alma Nova que parte da sua poesia revela. Por outro lado, Gonçalves Crespo, numa atenção à singularidade do humano, mostra-nos, com a delicadeza que a sua poesia contém, a tragédia associada tantas vezes, no passado como hoje, à prostituição feminina.
Evidentemente, o soneto Metempsicose de Antero de Quental composto na mesma época, é um caso à parte, constituindo na forma, na profundidade da ideia e desenvolvimento do assunto, uma obra-prima absoluta da poesia em lingua portuguesa e já detalhadamente abordado aqui no blog
Tanto a poesia de João Penha como de Gonçalves Crespo já foram alvo da atenção do blog e para esses artigos remeto o leitor.
A poesia de Foutoura Xavier aparece no blog pela primeira vez e talvez surja a ocasião de a ela voltar.
Noticia bibliográfica
Estudo anatómico foi publicado em Opalas com edição definitiva e aumentada 1905
Dulce foi publicado em Miniaturas e nas Obras Completas do poeta na edição de 1897
Entre mundanas foi publicado em Echos do Passado, 1912