É da vida, realidade que parece pesadelo, incompreensão maior que o sonho, que nos fala este ciclo de três poemas sobre sonhos, escritos por Georg Trakl (1887-1914).
Os sonhos são o nosso quotidiano: no que nos motivam e entusiasmam, quando sonhadores acordados, no que nos perturbam quando no sono nos levam por mundos de incompreensão e estranheza.
…
Como estrela caindo, folha tombando,
Assim me via num vai-vem perdido,
Eternamente esse sonho ecoando —
Mas não sabia entender-lhe o sentido.
É sem preparação particular que lidamos com os sonhos desde a infância. E se o mundo risonho por vezes os atravessa, outras é o pesadelo do real que nos transtorna e alucina:
Da minh’alma nasceram céus de sangue
E púrpura ardendo em sóis gigantes,
Estranhos jardins povoados de brilhos
E delicias letais e sufocantes.
…
A vivência de experiências dolorosa impregna-nos a alma para lá de qualquer controle racional:
Vi cidades pelo fogo consumidas
E o cortejo de horrores pelo tempo fora,
E muitos povos a pó ser reduzidos,
Perder-se tudo no fundo da memória.
…
Quando a catástrofe é grande, esbate-se a fronteira entre realidade e sonho e acontece vermos:
… levantando-se do meio da podridão,
Crescer para novo dia nova vida.
Crescer para novo dia e logo morrer —
A tragédia que o mundo sempre finge
Compreender no acto de a viver,
…
Reportando-se estes poemas a uma realidade passada, há neles, infelizmente, muito do nosso mundo de hoje. Basta apenas olhar em redor de olhos abertos.
Três Sonhos
I
Vi-me num sonho de folhas caindo,
De lagos escuros num bosque perdido,
De tristes palavras ecoando —
Mas não sabia entender-lhes o sentido.
Vi-me num sonho de estrelas caindo,
De preces chorosas num olhar ferido,
De um sorriso que vinha ecoando —
Mas não sabia entender-lhe o sentido.
Como estrela caindo, folha tombando,
Assim me via num vai-vem perdido,
Eternamente esse sonho ecoando —
Mas não sabia entender-lhe o sentido.
II
No escuro espelho da minh’alma
Há imagens de mares nunca sentidos,
Terras tristes de trágicas visões,
Esvaindo-se em azuis indefinidos.
Da minh’alma nasceram céus de sangue
E púrpura ardendo em sóis gigantes,
Estranhos jardins povoados de brilhos
E delicias letais e sufocantes.
E o poço negro que é a minha alma
Gerou imagens de noites tenebrosas,
Animadas por anónimos cantos
E o sopro eterno de forças ominosas.
Treme-me a alma nas trevas da lembrança,
Como se em tudo se revisse enfim —
No insondável mistério de mares e noites
E em fundos cantos sem começo nem fim.
III
Vi cidades pelo fogo consumidas
E o cortejo de horrores pelo tempo fora,
E muitos povos a pó ser reduzidos,
Perder-se tudo no fundo da memória.
Vi deuses afundar-se em escuridão,
A mais sagrada harpa destruída
E, levantando-se do meio da podridão,
Crescer para novo dia nova vida.
Crescer para novo dia e logo morrer —
A tragédia que o mundo sempre finge
Compreender no acto de a viver,
E cuja dor nocturnal e demente
A doce glória da beleza cinge
Como universo de espinhos sorridente.
in Georg Trakl, Outono Transfigurado, ciclos e poemas em prosa, tradução e prefácio de João Barrento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Anselm Kiefer (1945), Ich halte alle Indien in meiner Hand (Tenho todas as Índias na minha mão) de 1995.
Conheci a poesia de Trakl aos 18 anos.Tenho hj 72. Encontrei o site por acaso e apreciei mto poder rever.
Obrigada.
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Obrigado pelo comentário.
É um prazer redobrado ir ao encontro de cada leitor desconhecido que por acaso encontra o blog e gosta de algo com que se depara.
Até breve.
Carlos Mendonça Lopes
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