Nas sociedades ocidentais, para os não-judeus, os valores cristãos cresceram connosco, e nessa medida, dialogamos nas nossa recusas e certezas com o cristianismo. Não pensamos fora dele.
E se a cultura de erudição trabalha os conceitos com refinada exigência, a cultura popular encontra uma linguagem que permite transmitir com a maior simplicidade os valores da fé. São exemplo as variadas orações populares de invocação aos diversos santos do catolicismo, a Deus, à Virgem, a Jesus, qual seja a transcrita a seguir:
Oração Popular a Jesus
Senhor, fazei
Da minha boca porta,
Da minha garganta escada,
Da minha alma, assento,
Do meu coração, morada!
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Paul Gauguin (1848-1903), O Cristo Amarelo pintado em 1889, na qual a dimensão da religiosidade popular se espraia: por um lado na alacridade da paleta e rugosidade do desenho, por outro na composição, com a contemplação da imagem de Cristo crucificado por três camponesas em oração.
Esta mesma pintura leva-me irresistivelmente a uma outra poesia popular de Portugal onde a consciência profunda da fusão entre Deus e a terra-mãe se espelha, tal qual como nesta pintura o amarelo, qual sol que ilumina e alimenta o mundo, é o mesmo que mostra o corpo de Jesus crucificado e a terra que se avista na paisagem.
Poema
Eu na terra fui nascido,
E eu na terra fui criado,
A terra me há-de comer
Depois de ser sepultado.
1
A terra é a minha mãe,
Não no posso duvidar
E para esta me criar
Tudo da terra me vem.
Eu à terra quero bem,
A terra bem me tem querido,
Eu na terra tenho vivido
E na terra é que hei-de ter fim,
Sei que a terra que é assim,
Eu na terra fui nascido.
2
Eu na terra é que semeio
De todo o meu alimento,
Da terra tiro o sustento
E na terra é que passeio;
Da própria terra me veio
Água para ser baptizado,
A mesma água me tem dado
Tudo quanto é preciso,
Tenho pena se a terra piso
E eu na terra fui criado.
3
Deus à terra me mandou
Com o uso da razão,
A terra me deu o pão
E o pão é que me criou.
Ao dispôr da terra estou,
Visto na terra viver;
A terra me há-de valer
Enquanto nela for vivendo
E depois, quando morrendo,
A terra me há-de comer.
4
O corpo da criatura
É só terra e nada mais,
Os nossos restos mortais
Estão sujeitos à sepultura.
Isto é a verdade pura,
Tudo na terra é criado,
Depois torna ao mesmo estado
Visto na terra viver,
E a terra me há-de comer
Depois de ser sepultado.
Poemas transcritos de Rosa do Mundo, 2001 poemas para o futuro, Assírio e Alvim, Lisboa 2001.