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Canaletto - 1732 a

À imagem iconográfica de Canaletto (1697-1768) com que abre o artigo, dando a ver a Veneza do século XVIII, que em grande parte hoje se conserva, acrescento 2 poemas de Aleksandr Blok (1880-1921), poeta russo, o mais velho daquela geração que sucumbiu ao avançar da revolução soviética para o estalinismo, triturando todos os movimentos artísticos de vanguarda que a revolução permitira e desenvolvera.

Veneza II

Pelas lagunas, frio vento.
Gôndolas – mudas tumbas.
Esta noite, jovem e doente,
Sob a coluna do leão sucumbes.

Na torre, com uma canção de chumbo,
Os gigantes dão a hora noturna.
Na laguna lunar Marcos mergulha
Sua iconóstase soturna.

Nas sombras das galerias dos palácios,
À palidez da lua –  passos.
Salomé, esgueirando-se, passeia
Minha cabeça em sangue nos seus braços.

Tudo dorme – palácios, canais, gente.
Só o passo deslizante da princesa
Só – sobre o peito negro – uma cabeça
Contempla a treva em torno com tristeza.

Veneza III

O barulho da vida já não dura.
A maré de inquietudes se quebranta.
E no veludo negro o vento canta
Minha vida futura.

Talvez despertarei noutro lugar,
Quem sabe nesta terra entristecida,
E algumas vezes hei de suspirar
Pensando em sonho nesta vida?

Mercador, padre, arrais, neto de um doge,
Quem me fará viver? Que criatura
Há de forjar com minha mãe futura
Na noite escura a vida que me foge?

Quem sabe até, ao escutar o canto
Da jovem veneziana, comovido,
O meu futuro pai por entre o encanto
Da canção já me tenha pressentido?

Quem sabe em algum século vindouro
A mim, criança, a sorte me consente
Abrir as pálpebras, tremulamente,
Junto à coluna do leão de ouro?

Mãe, o que canta este áfono instrumento?
Talvez a fantasia já te embale
E me protejas com teu santo xale
Da laguna e do vento?

Não! O que é, o que foi – tudo está vivo!
Fantasias, visões, ideias – tudo!
A onda do oceano recidivo
As despeja na noite de veludo!

Traduções de Augusto de Campos, in poesia da recusa, Perspectiva, São Paulo, 2006.

Apenas a biografia e a peculiar disposição do poeta Aleksandr Blok explica esta atmosfera de morte que percorre os seus poemas evocando Veneza, os quais integram os Versos Italianos de 1909.

Provavelmente a cidade que ele conheceu não foi a Veneza que em meados dos anos 70 conheci e me apaixonou como a mais bela das cidades, onde a ausência de ruído automóvel e o som dos passos no empedrado de calçadas e pontes fazia o mundo parecer de uma magia fora do meu tempo.

Hoje, a avalanche turística permanente fez desaparecer grande parte dessa magia, mas há um encanto que permanece e faz desejar voltar a Veneza, sempre.

Termino com mais 3 vistas de Veneza pelo pincel mágico de Canaletto.

Canaletto - 1728

Canaletto - 1732 b

Canaletto - 1732