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A Marquesa de Alorna (1750-1839), conhecida enquanto poetisa por Alcipe, tem sido alvo recente da atenção de biógrafos sem que a sua poesia tenha despertado curiosidade concomitante.

A tragédia pessoal  vivida desde o inicio da adolescencia  até à idade adulta, a mulher culta e brilhante que nos salões europeus conquistou admiração, são os argumentos que espevitam a curiosidade do leitor de hoje sobre a biografia da mulher. A obra poética, embora datada, contém jóias que vão para além do esquematismo de escola e o sentimento extravaza as convenções em muitos dos poemas.

Sem dispôr agora do tempo para o artigo circunstanciado que gostaria, remeto-vos para quatro poemas onde sonho, destino e desejo de amor se retratam, terminando a escolha com uma graça sobre cortesias, matéria importante à época da autora.

Os quatro primeiros poemas foram extraídos do conjunto de CANTIGAS, o último integra um grupo de QUADRAS, todos presentes no Tomo II das suas OBRAS POÉTICAS publicadas em 1844.

Cantiga XLIX

 

Sonho

Sonhos meus, suaves sonhos,

Sois melhores [do] que a verdade;

Quando sonho sou ditosa,

Sem o ser na realidade.

 

Amor, tu vens nos meus sonhos

Acalmar-me o coração;

Mas cruel! Quanto prometes

Não passa de uma ilusão.

 

Sonhei, tirano, esta noite,

Sonhei que tu me chamavas,

E que sobre a relva branda

Tu mesmo me acalentavas.

 

Disseste-me: “Dorme, Alcipe,

Amor sobre ti vigia,

Mal podes temer os fados.”

 

Dormi: neste dobre sono

Me achei n’um palacio d’ouro:

Entregaram-me uma chave

Para que abrisse um tesouro.

 

– “Chave mágica, sublime,

Que me vais tu descobrir?

Se é menos do que eu desejo

Será melhor não abrir…”

 

– “ Abre, Alcipe” qual trovão

Brada o deus que me vigia:

Acordei sobressaltada,

E abriu-se, mas foi o dia.

 

 

Cantiga L

 Pára, funesto destino,

Respeita a minha constância;

Pouco vences, se não vences

De minha alma a tolerância.

 

Se eu sobrevivo aos estragos

Dos males que me fizeste,

Inutil é combater-me,

Nem me vences, nem venceste.

 

Com secos olhos diviso

Esse horror que se apresenta:

Os meus existem de glória;

Morrendo a glória os alenta.

 

 

Cantiga LI

Basta, destino severo:

Em dias tão malogrados

Me trocaste sem piedade

Instantes afortunados.

 

Quais voltas do sol os raios

Pelas trevas apagados,

Voltai, se podeis, instantes,

Instantes afortunados!

 

Voto imprudente! Que digo?

Só posso esperar cuidados,

Uma vez que os interrompem

Instantes afortunados.

 

 

 

Cantiga LIX

Quem diz que amor é um crime

Calunia a natureza,

Faz da causa organizante

Criminosa a singeleza.

 

Que vejo, céus! Que não seja

De uma atracção resultado?

Atracção e amor é o mesmo;

Logo amor não é pecado.

 

Se respiro, a atmosfera,

Com um fluido combinado,

É quem me sustenta a vida

Dentro do peito agitado.

 

Se vejo mares, se fontes,

Rio, cristalino lago,

Dois gases se unem, formando

Aguas com que a sede apago.

 

Uma lei de afinidade

Se acha nos corpos terrenos;

Ácidos, metais, alcalis,

Tudo se une mais ou menos.

 

De que sou feita? – De terra;

Nela me hei de converter:

Se amor arder em meu peito

É da essencia do meu ser.

 

Sem que te ofenda razão,

Quero defender o amor;

Se contigo não concorda

Não é virtude, é furor.

 

 

 

Despedida nas Caldas a uma amiga

Na invenção das cortesias

Não entrou o coração:

Nasceram do fingimento,

Tolerou-as a razão.

 

Se eu fosse amiga das dúzias,

Fôra a teus pés despedir-me:

Mas faz sol, eu tenho calma,

Quer o meu bem, quero ir-me.

 

Vou-me embora, adeus amiga:

De palavra ou por escrito

Verás sempre na minha alma

Mesmo o que não tenho dito.

 

Lerás o que outras não lêem

Saudades, sinceridade;

E mais cálida que as Caldas

A minha terna amizade.