Tal como a nossa, todas as épocas têm uma Nova Poesia Portuguesa.
Atenho-me hoje à Nova Poesia Portuguesa em 1854 pela mão de Camilo Castelo Branco (1825-1890).
Publicou o nosso autor em Maio de 1854 uma folha impressa com 8 páginas, O Bico de Gaz. Foi publicação de número único e hoje é das mais raras peças da bibliografia camiliana, juntamente com A Infanta Capelista. No final do século XIX conheciam-se apenas 4 exemplares de O Bico de Gaz.
Em O Bico de Gaz, ironia, sarcasmo e sátira têm roda livre. O jornal foi inteiramente escrito por Camilo e um dos artigos respeita a A Vespa do Parnaso!, publicação de versos satíricos da autoria de Faustino Xavier de Novaes (1820-1869), surgida na altura, no Porto, e assinada POR UM MORDOMO DAS ALMAS DE CAMPANHÃ que vem de colarinhos tesos meter a fala ao bucho ao seu juiz, autor das FOLHAS CAIDAS.
A Vespa do Parnaso! pretendia deliberadamente evocar o livro de poesia de Camilo publicado já no inicio desse ano de 1854, FOLHAS CAÍDAS, APANHADAS NA LAMA, assinadas por O AMIGO JUIZ DAS ALMAS DE CAMPANHÃ. O livro de Camilo é uma feroz sátira aos costumes do tempo e às personalidades enfatuadas do seu dinheiro e ignorância, surgidos com a mudança da situação politica. Deixo como exemplo estas quadras do poema AOS BARÕES:
...
Vossa avó de pé descalço,/ traz canastra com toucinho/ pão de broa corpulenta, borracha de verde pinho.
Inda ontem eu vi isto!…/ e vocês sus patuscões, / devem espantar-se comigo/ de serem hoje barões!
…
Burros ficam sempre burros,/ embora tragam selim, / cravado de diamantes / e estofado de cetim.
O brilhar dessas comendas/ não vos muda a condição:/ o instinto vos arrasta/ para o côvado e balcão.
É vasta e fascinante a produção de Camilo fora do romace e novela, nestes primeiros anos da década de 50, e a sátira aos costumes do tempo ocupa aí um lugar privilegiado.
O propósito do artigo em O Bico de Gaz foi saudar na publicação de A Vespa do Parnaso!, a nova poesia portuguesa em 1854, ou pelo menos o poder demolidor da sátira nessa nova poesia, da qual Novaes era um dos expoentes, além de editor de O Bardo desde 1852.
Acompanha a apresentação um poema extraído de A Vespa do Parnaso!, O BARÃO E O DOUTOR, onde se relata uma conversa entre um médico e um barão de recente fornada. Escrito em forma corrida, o diálogo mosta a ignorância da lingua e a vacuidade de conversação social com laivos de pretensão a conversa culta, onde o dislate impera. O barão é dado às letras e gosta de se istruir.
Deixo agora o leitor com a apresentação de A Vespa do Parnaso! feita por Camilo em O Bico de Gaz, o qual, de caminho, refere, em resumo, a sua opinião sobre a poesia dos tempos antigos.
Como é de(ver), nada presta antes do que nós fizémos. As vaidades juvenis, e Camilo tinha à data 29 anos feitos a 16 de Março, falam sempre da mesma maneira qualquer que seja a época.
Vamos ao texto:
A imprensa do Porto custa-lhe a conceber, mas, quando concebe, vem sempre à luz do mundo literário com um parto robusto, esperançoso, e digno dos pais.
A vespa do Parnaso, recém-nascida, ocupa o espirito público, e inaugura uma nova época nos fastos da poesia.
No principio, quando os patriarcas do género humano fizeram versos, beberam as inspirações na magestade da natureza, no pasmo dos corpos luminosos, que rolam no espaço, e no terror da mão omnipotente de Jeová.
Depois a Grécia inventou os deuses. A poesia alteava-se a regiões do mito, embelezava a mentira pagã dos grandes modelos, e arranjava com Marte, Cupido, Neptuno, e Platão um pastel de onzenices parvas, cujos restos nossos pais amargaram no sonetos insofriveis da escola arcadiana.
Veio a escola romantica. Os arcanjos e as estrelas, os silfos e os arrebóis, as brisas e os crepuscúlos, o murmurio das fontes e o ciciar da ramagem, o hino da floresta e a nuvem de cetim, e muitas outras coisas bonitas proscreveram as fórmulas eruditas e compactas da mitologia de insonsa memória.
Era esta a poesia dominante, quando a Vespa do Parnaso, sob o modesto título, que só por si espreme um epigrama nas bochechas dos antiquários, apareceu radiosa como todas as ideias novas.
A índole desta ligeira colecção de poemas extrema-se de todas as escolas para fundar uma, peculiarmente sua.
Quem lhe arrebata os voos, e lhe faísca o lume do entusiasmo sonoroso são os marotos de todo o género, os estupidos de todas as formas, os imbecis de todos os quilates, e os pedantes de toda a força de bestialidade conhecida.
Já vêem que o género é inteiramente novo.
A poesia, assim concebida, torna-se d’um proveito real para a sociedade. O sumo do ridículo, espremido nas faces que a vergonha encontra de porcelana, há-de coar-lhe na alma de cântaro, áquele que, apesar das grandes orelhas, tem de enterrar a carapuça até ao pescoço.
Convidamos a geração nova a impregnar-se, se assim posso exprimir-me, do sabor picante da Vespa do Parnaso.
Ao acaso transcrevemos, com permissão do seu autor, uma poesia que nos deu momentos de conscienciosa gargalhada, sendo certo que não é nosso costume rir de bagatelas:
O BARÃO E O DOUTOR.
B. – Senhor Doutor, dá licença? –
D. – Não sei quem é que está aí! –
B. – Seu criado – eu vou entrando…
D. – Oh! Vossência por aqui!
A Senhora Baronesa
Como passa? – Tem saúde?…
Quis ir ontem visitá-la…
Tive que fazer, não pude.
B. – Eu le digo… vai andando;
Mas sempre com suas teimas,
Não quer tomar o remédio
Que le deu pras almorreimas!
Tem-se queixado do Omnibus,
Anda muito incomodada;
Mas tem lá seus carrapichos,
E então, não quer tomar nada.
D. – Pois, Senhor, queira Vossência
Ver se pode resolvê-la
A entregar-se à Medicina,
Que eu amanhã irei vê-la.
Vá-lhe dando alguns passeios,
Roubando-a à meditação;
Que é sempre, nessas moléstias,
Proveitosa a distração.
B. – Ai… bô… bô!… alguns passeios!…
Ela em casa nunca está;
Não há por i uma festa
Onde eu com ela não vá!
Já foi à Foz ver o hydroppico,
E onte fomos ó triato;
E por sinal, que chegamos
No fim do purmeiro acto.
A propósto, meu amigo,
Que me diz à Companhia?
Aquela Lucrécia Borges
Foi bem… apois não iria?
Olhe qu’aquele… o… Finório,
Qu’é cunhado da Jordana,
Canta bem… é bô maritmo,
E nunca… nunca se engana!
E o outro tenor baixito,
Chamo-le o basso profundo,
Tamém é bô … e bem mostra
Que tem pratega do mundo.
E a Jordana! Isso é que canta
Com’eu inda não ouvi!
Não sei por que esses janotas
Dão mais palmas à Ponti!
D. – A Ponti é como artista
Cousa muito sup’rior,
B. – O quê?… melhor qu’a Jordana?…
Nada… nada… não senhor!
A Ponti, não gosto dela;
– Não digo qu’é mau contralto;
Mas é muito presumida…
A outra canta mais alto.
Não faz uns tais gargarejos;
Mas quem sabe o que ela foi?…
Tem um cantar grosso e forte,
Qu’as vezes parece um boi!
Quando, há dias, dava palmas
À Ponti, certo magote,
Enfim – pequenas misérias –
Disse eu lá do cambarote.
É gente que não entende,
Gosta duma bacatela;
A Ponti se é boa dama,
Eu não engraço com ela!
Diga-me – que livro é esse,
Que lia quando eu cheguei?
D. – Era o Hahnemann. – B. – Conheço,
Grande poeta… bem sei!
O Senhor Doutor se lesse
A Fremosa Mangalona,
Havia de gostar muito;
Olhe que é muito ratona!
E quando quiser bons livros
Faça favor d’ir por lá:
Também tenho o Calros Mano…
Eu l’os mandarei pra cá.
D. – São bons livros – eu conheço-o;
Fico obrigado a Vossência;
Mas o tempo que me resta
Emprego-o só na ciência.
B. – Na ciência?… e é bô livro?
E quantos balumes tem?…
Ah!… já sei… eu ‘stava tolo…
São quatro… tenho-os tamém!
Olhe que eu sou dado às letras,
E gosto de me istruir:
Pois de falar?… quando falo
Todos gostam de m’ouvir.
Mas passemos a oitra coisa:
Estes retratos quem são?
Vamos cá dar volta à sala,
E faça-me a explicação.
Daquele estão-me a dar ares;
Não será um meu besinho?
D. – É Lamennais. – B. É o mesmo,
Já lhe merquei muito binho.
Ora diga-me – e aquele
Que tem anéis no cabelo?
Aquele home é estrangeiro,
Que eu não me lembro de vê-lo.
D. – De certo não, que é antigo,
Já não é dos tempos seus;
Nem é possível, Vossência
Ter visto o Rei dos Judeus.
B. – O Rei dos Judeus! – É este? –
Oh que soberbo tratante!
Não sei como quer em casa
Um retrato semelhante!…
Eu cá sou escrupuloso
Nisto de religião:
O Rei dos Judeus! – Arruda!
E na casa dum cristão!…
Este sim… não é o Bispo?…
O D. Jiromeno? … é…
Morreu… coitado… era um home
Em que eu tinha muita fé.
E por via das exéquias…
Por se meter a pregar,
É que se foi… que era rijo,
Inda podia durar.
D. – Eu não sei que lhe viesse
Daí, moléstia de morte!
Com o estudo… a vigília…
Podia bem, que era forte!
B. – Mas olhe cá, meu amigo,
Aqui pra nós: – qu’ é vigília?…
D. – Falta de sono. – B. – Isso, isso…
Tudo por causa da Emília…
Um home que tem idade
E quer fazer de rapaz,
Metido nesses excessos,
Não sabe a asneira que faz!
Enfim, Doutor, vou-me à praça,
Que deve agora estar cheia:
– Até à noite, qu’ habemos
De bêr-nos na Sumboleia.
Supus desnecessário um glossário para os dislates do barão. Para os não iniciados registo apenas que Lucrécia Borga se refere à opera de Donizetti Lucrécia Borgia.
Noticia bibliográfica:
A Vespa do Parnaso! É um raro folheto com 53 páginas. Os poemas de Faustino Xavier de Novaes foram posteriormente incluidos nas suas Poesias. O frontespicio de A Vespa do Parnaso! acompanha este artigo.
O conteúdo de O Bico de Gaz, a menos do poema de Novaes, pode encontrar-se no volume II dos Dispersos de Camilo publicados por Júlio Dias da Costa em 1925 na Imprensa da Universidade de Coimbra.
O DICIONÁRIO DE CAMILO CASTELO BRANCO de Alexandre Cabral, publicado, em 2ªedição revista e aumentada em 2003, pela Editorial Caminho é, com pequenissimas excepções, fonte de confiança sobre Camilo, os homens e as obras do seu tempo.
Nota à margem
É possivel que Camilo, com a cultura e o sarcasmo que lhe são conhecidos, quisesse significar o ânus com a expressão O Bico de Gaz, pois é a forma como o orgão é conhecido por terras do Ceará, no Brasil, de onde vinham enriquecidos alguns “Brasileiros” fustigados, por esses anos, na sua prosa e poesia.
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