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Se não nos assustarmos com a austeridade das edições ou encadernações vetustas, podemos ser brindados com deliciosas surpresas.
Num poema da primeira metade do século XVII vamos encontrar uma saborosa metáfora em que carícias a um manjericão nos falam dos sábios trabalhos de mão e do que ela faz gozar:
Que o manjericão contente / … / Cair deixava a semente; / Mas era trabalho vão / Porque tornava a espigar / Em lhe dando outra demão, / Que tanto pode o gozar / Senhora da vossa mão.
E continua
Se assim, menina, se assim / Gostais desse doce ofício, / Mudai a mão para mim / E tereis largo exercício / Que há bem que fazer aqui;
Vamos então ao poema:
Mote
Tomara por ser capado
Senhora da vossa mão
Ser vosso mangericão
Glosa
Capáveis com tanto ar,
Menina, o manjericão,
Que eu vos chego a confessar
Que do meneio da mão
Namorou-me o seu capar;
Se favor tão envejado
Eu lograra possuido,
Não quisera mais do fado
Tanto que todo o partido
Tomara por ser capado
Cortáveis tão docemente
A semente a cada espiga,
Que o manjericão contente
Per vos dar menor fadiga
Cair deixava a semente;
Mas era trabalho vão
Porque tornava a espigar
Em lhe dando outra demão,
Que tanto pode o gozar
Senhora da vossa mão.
Se assim, menina, se assim
Gostais desse doce ofício,
Mudai a mão para mim
E tereis largo exercício
Que há bem que fazer aqui;
Mais mereço eu essa mão
Pois vos amo tão constante,
Não queirais que digam, não,
Que é mais que ser vosso amante
Ser vosso manjericão.
O poema foi muito popular à época pois chegaram até nós diversas versões em cancioneiros de mão.
O seu autor foi António Barbosa Bacelar (1610 – 1663) e o poema encontra-se incluído na edição das Obras Poéticas preparada por Mafalda Ferin Cunha e publicado em Outubro de 2007, em 500 exemplares, pela Fundação Calouste Gulbenkian na sua colecção de Cultura Portuguesa.
Em vida o poeta apenas publicou 1 poema. No entanto foi um poeta reputado pois os seus poemas circularam manuscritos em grande quantidade e são inúmeras as paródias ou sátiras a versos seus em obras dos contemporâneos. A edição das Obras Poéticas dá disso conta, referindo as variantes encontradas nas diferentes cópias manuscritas.
O único poema publicado em vida, foi escrito em castelhano como alguns outros e era próprio da época em que os poetas eram bi-lingues, e encontra-se incluído numas “MEMORIAS FVNEBRES. SENTIDAS PELLOS INGENHOS Portuguefes, na morte da fenhora Dona Maria de Attayde. OFFERECIDAS A SENHORA DONA LVIZA MARIA DE FARO CONDESSA DE PENAGVIAM”, livro publicado em Lisboa no Anno 1650.
À parte esta edição, e os poemas publicados no SEC. XVIII, na antologia Fenix Renascida, até hoje apenas foi publicado, e há alguns anos pela Assírio & Alvim, o poema “O Desafio Venturoso”. Estamos assim perante um poeta praticamente desconhecido, com obra vasta e de qualidade média muito elevada.
Alguns dos sonetos do autor destacam-se entre o melhor que a herança maneirista produziu numa clara memória da lírica de Camões.
E acrescento nesta memória da poesia de Camões, entre outras, uma longa e belissima glosa ao soneto Alma minha gentil que te partiste, ao fim e ao cabo assunto tão recorrente que até bem perto de nós o encontramos na canção de Gilbert Becaud “Et maintenant”.
Os assuntos do amor são frequentes nesta poesia, nos tons mais variados, da brejeirice pura, ainda que sem obscenidades e tantas vezes enunciada de forma metafórica, aos aspectos mais reflexivos sobre o sentimento.
Transcrevo agora o soneto:
A um Amante alcançando posse da sua dama, mas não podendo fazer o que queria
Perdido aqui o leme, a esperança
Naufragava em tormentos de rigores,
Quando propicia a sorte a meus temores
Se renova a tormenta com a bonança.
Toca ao porto o desejo e quando alcança
Tocar os ramos e apanhar as flores,
Ao gozar da esperança e dos favores
Deu em seco o desejo com a tardança.
Assim, quando seguro mais perdido,
De minha infausta sorte a lei ordena
Que não goze a vitória entre a vitória.
Oh portentoso caso nunca ouvido,
Que quando cansa de afligir-me a pena
Se conjure em meu dano a mesma glória!
Deixo por fim mais uma definição de amor, tão cara à poesia deste período, com a originalidade de definir também o seu reverso, o ciúme.
Nesta espécie de poema-ensaio terminando em silogismo, desenvolve o autor os argumentos sobre o conceito de amor, o papel da ausência na permanencia do amor, a inevitabilidade do ciúme e conclui que
Amor é um costume / De ver o que se ama,
e como tal:
Que raro amor escape de uma ausência.
Talvez abra o apetite a algum leitor para mais sabendo que:
Amor é um desejo / De fermosura amada, / … / Começa com afeição, passa a cuidado, / … / Depois se faz costume; / Isto é amor, vejamos o que é ciúme.
É mais à frente que encontramos a opinião do poeta sobre o que é o ciúme:
Da alma o mais perigoso desatino,
ainda que:
Este mesmo ciúme que me inflama, / … / Faz-me mais doce a chama, / Faz-me maior a dita, / Logo é justa razão, justo costume, / Que raro amor acabe de um ciúme.
Visto que está como o ciúme não põe fim ao amor, veremos o que acaba com ele.
Para o nosso poeta é a ausência que começa por provocar a saudade, ou seja:
Abranda o sentimento / De uma amante vontade;
e no final acaba com ele.
Com a saudade e a ausência chega uma palavra em desuso enquanto substantivo – um descustume – e quão adequada aqui está:
De um deixar de ver, um descustume / De não ver o que via / Quem da vista de uns olhos só vivia.
Vamos então, os corajosos, ao poema:
Amor é um desejo
De fermosura amada,
È paixão dentro da alma radicada
De lograr o que amo e o que vejo.
Ao príncipio é agrado,
Começa com afeição, passa a cuidado,
Ânsia é depois e logo arrojamento,
Crece a dor, sobe o fogo e sempre é vento,
Depois se faz costume;
Isto é amor, vejamos o que é ciúme.
Ciúme é um receio mal siguro
De que outrem logre o prémio que eu procuro,
Um escrúpulo ousado,
Um medo mal nascido
De que saia na graça preferido
Quem não é nos desvelos igualado;
Tanto pois se acredita
Esta fúria cobarde,
Que só para estrovar-lhe aquela dita
Em novas chamas arde,
Arde igualmente e cia, [ciar: ter receio, ter ciúmes]
O que antes era amor se faz profia,
Só com maior violência
O desejo se passa a competência.
Logo, inda que o ciúme é um tormento
Que imprime o mais custoso sentimento
E, como diz o oráculo divino,
Da alma o mais perigoso desatino,
Não é muito que seja
Novo de amor motivo,
Que há de ficar por força amor mais vivo
Crescendo a leis de amor a leis de enveja.
Murcha o ciúme a esperança verde,
Mas amor mais se anima,
Que como não se estima
Senão o que se perde,
A beleza ciada
Crece nova razão para adorada,
Que torna a ser de novo apetecida
Só porque este receio a faz perdida;
Até já representa a fermosura
Este tormento activo
E dá novo motivo,
Na perda que afigura,
Para ser com mais ansias desejada
Do coração que fino a galanteia,
Que é parecer alheia;
Que muito pois que seja mais sobejo
Da beleza o desejo,
Se cuida que outro a goza
E crece o ser alheia ao ser fermosa.
Amo de Cloris bela a fermosura,
Aos meus olhos parece que é vintura
Lograr daquela graça o doce riso,
Mas não sei se se engana o meu juizo;
Este temor me esfria;
Vendo pois que outro busca o que eu queria,
Achando a mesma chama em outro peito,
Fico da minha escolha satisfeito.
O coração sangrado em seu tormento
O ciúme acredita ao sentimento,
Não só ama a vontade
Mas também o juizo a persuade,
Idolatrando mais fino o belo rosto
Tanto já por razão como por gosto.
Este mesmo ciúme que me inflama,
Como também a escolha me acredita,
Faz-me mais doce a chama,
Faz-me maior a dita,
Logo é justa razão, justo costume,
Que raro amor acabe de um ciúme.
Vamos a saudade,
Que, inda que lisonjeia,
Abranda o sentimento
De uma amante vontade;
Inda que é doce afago do tormento,
Dela mais se receia
Quem sabe que periga mal sigura
Às mãos da saudade a fé mais pura;
Esta pena, que ausência se nomeia,
Um acto é negativo
De um coração mal vivo
De um deixar de ver, um descustume
De não ver o que via
Quem da vista de uns olhos só vivia.
É siguro argumento
Que o fim responde sempre ao nascimento;
Qualquer acto que teve a existência
Numa certa influência,
A razão ordenada lhe distina
Em os Astros contrários a ruina;
Quem de quente recebe o ser amigo,
Lá no frio lhe aguarda o seu perigo,
Quem do frio recebe o ser primeiro,
Lá no quente lhe espera o derradeiro.
Amor é um costume
De ver o que se ama,
Logo esta ardente chama
Há de acabar às mãos do descostume,
Traz este descostume a saudade;
Amor é um custume da vontade,
Logo com razão mostra a experiência
Que raro amor escape de uma ausência.