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Esquecido nas páginas de O BARDO, entre um poema de Soares de Passos e outro de Camilo Castello-Branco, encontrei este poema, recordação da minha Tavira natal e escrito no dia de S. João de 1854.
O dia de S. João.
Saudades da minha terra
Les beaux jours du printemps ont passé comme un jour,
Et ces beaux jours pour moi sont perdu sans retour.
Michaud – Regrets du Proscrit.
Quem dos céus da minha terra / Não viu o límpido azul,
Quem da sua verde serra / Não viu nunca as rasteirinhas
Áureas, argenteas florinhas / Sorrindo à brisa do sul;
Quem em noites d’alma lua / Lá junto à beira do rio,
Quando no rio flutua / Da lua o clarão saudoso,
Não viu quedo e silencioso / De mágoa o peito vazio;
Quem o crepúsculo vago / Não viu ali uma vez
A debuxar-se num lago, / Como em face de donzela
Se retrata a imagem bela / Da mais pura candidez;
Quem jamais ouviu do sino / Do mosteiro d’Atalaia
Aquele som peregrino, / Que na quebrada dos dias
Tocando ás Ave-Marias / No espaço em ondas se espraia;
E quem jamais o perfume / Daqueles campos sentiu,
Onde brotam em cardume / Singelas, frescas boninas,
Quais assim noutras campinas / Vista d’homem nunca viu;
Oh! Não sabe o que é um riso / Reflectido lá no céu
Na face de um paraíso / Que entre serra e mar se estreita;
Nem jamais viu tão perfeita / A natureza sem véu!
Na minha terra um só dia, / Ai, dá tanta e tanta luz,
Que n’alma brota a poesia, / Quando da serra na encosta
Do sol a imagem se arrosta, / Ou quando no mar transluz.
Cada folha que ali brota, / Cada conchinha do mar
São de poesia uma nota; / E a natureza mais rude
Canta-a em seu alaúde / O poeta que sabe amar.
E eu canto assim tão magoado, / Dando de mágoa um sinal,
Porque este dia saudado / Nas aldeias e cidades
Veio avivar-me as saudades / Do meu ninho paternal.
Lembram-me as galas formosas / D’este dia tão gentil,
Cuja aurora toda rosas / Passava beijando as flores,
Qual fresca manhã de Abril.
Neste dia eu via o povo / Mágoas suas a espalhar;
Mas hoje só diz de novo / À triste lembrança minha
O quanto passou asinha / A quadra do meu folgar!
Que saudades que eu não tenho / Da vida que então vivi!
Hoje lembro-me do lenho / Em que eu ia rio avante
Junto à serra verdejante / Dessa terra em que nasci.
Hoje cresce-me a saudade / Das águas do meu Gilão;
Lembra-me aquela cidade / Com seus brincs populares,
E lembram-me os meus folgares, / Folgares que já não são.
Lembram-me aquelas lareiras / Onde de verde alecrim
Ardiam vastas fogueiras / Entre dois mastros erguidos,
De murta e flores vestidos, / Quais outros não vi assim.
Lembram-me as belas folias / Daquelas terras de além,
Que nestes e noutros dias / Ali o povo engendrava,
E tudo que então amava / Lembra-me agora também.
Que tempo! Que tempo aquele / Que tão rápido passou!
Hoje mais não tenho dele / Do que uma grata lembrança
Pois que apagada é a esperança / Que desde então me ficou!…
Oh! Quem inda fora um dia / Ver meus lindos laranjais,
Onde ás tardes triste eu ia / Por sobre verdes folhagens
Da ribeira junto ás margens / Deslaçar meus tristes ais!
Quem pudera, oh! Quem pudera / Ir lá ver o adeus do sol
Nas tardes de primavera, / E ouvir gorgeios suaves
Daquelas tão lindas aves, / E os cantos do rouxinol!
Oh! Minha formosa terra, / Quem dentre os encantos teus
Lá da tua verde serra / As flores vira medrando,
E à luz da lua alvejando, / Quais as vejo em sonhos meus!
Ai que saudade tão bela / É esta que a pátria dá!
Eu que sei tão bem sofrê-la, / Posso dizer sem vaidade
Que igual a esta saudade / Outra saudade não há!
Dá-me, oh dia prazenteiro, / Um raio do teu fulgor,
Que ser possa mensageiro / De saudosos pensamentos,
E que os leve em meus lamentos / Ao berço do meu amor!
Lisboa 1854 – Junho 24.
De seu nome completo, Sebastião Philippes Martins Estácio da Veiga (1828-1891), nascido em Tavira e hoje esquecido enquanto poeta, foi um notabilíssimo arqueólogo, cuja biografia vale a pena ler na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
Poema de um moço de 25 anos, espanta a tristeza nostálgica com que recorda os tempos de adolescência vividos na cidade.
Ler este poema levou-me nos braços das minhas próprias recordações, sobretudo as aventuras de descoberta daquela natureza esplendente de luz, e inebriante na gama do seu colorido feérico que vai dos azuis do mar e céu, ao longe, aos verdes e ocres da serra afastada, e sobretudo deslumbra, no branco do casario, estonteante até doer, em tardes de sol em fogo.
Foi um tempo vivido na saída da infância, em que quase nada teria mudado no pouco mais de um século decorrido desde a adolescência do poeta evocada no poema.
Haveria de novo o comboio, construído já na segunda metade do século XIX e inaugurado no alvor do séc. XX, e aquela assustadora ponte ferroviária, desafiadora e inacessível para os olhos de uma criança.
Esta ponte foi cenário de peripécias de alto risco, em que um grupo de jovens adolescentes, ou nem isso, se media nos feitos de coragem de a atravessar sob os carris, devassando a estrutura metálica e fruindo a vista em redor quando chegados ao meio da ponte sobre o rio, ufanos da proeza.
Do S. João, pretexto do poema, são primeiro os cheiros que me vêm à memória, alecrim e murta, como bem refere o poeta. Das fogueiras de alecrim vividas ainda na minha adolescência e provavelmente pouco diferentes das que o poeta recorda, falarei talvez noutra ocasião.
Do poeta, a Câmara Municipal de Tavira em conjunto com Edições Colibri, propôs-se há anos publicar 3 volumes de poesias inéditas. Conheço apenas o primeiro volume com poemas dos 20 anos, ingénuos e de parco interesse poético, sendo a edição pouco cuidada, e em que felizmente a introdução dá um pouco a conhecer a vida e obra do homem. Chama-se adequadamente “POESIAS (ou banalidades poéticas). Não sei se os restantes volumes previstos viram edição em livro.
Tendo nos tempos de estudante publicado de forma dispersa, por publicações periódicas alguns poemas, apenas reuniu em livro “Romanceiro do Algarve“, publicado em 1870, na linha do Romanceiro editado por Garrett. É uma recolha de romances populares retocados pelo poeta para a edição, tendo o manuscrito com as versões originais sido encontrado há poucos anos no arquivo do Museu Arqueológico de Lisboa, cujo espólio inicial foi reunido por Estácio da Veiga.