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É o pó dos anos que permite à poesia erguer-se das amarras da história que nos seus acontecimentos se sobrepõe ao conteúdo poético. Chegado o tempo, as circunstâncias de biografia do poeta já não participam da recepção dos seus poemas no leitor. Não sei se será já o caso para alguma poesia de Mário Beirão (1892-1965), admirada nos seus primórdios por Fernando Pessoa*, e onde assunto e forma correm marginalmente às correntes inovadoras do século. A outros deixo o quadro de história literária em que ela se desenvolve.
Como refere José Carlos Seabra Pereira no prefácio à edição das Poesias Completas de Mário Beirão: “Entre bucólica e heróica, a poesia de Mário Beirão continua a alcançar momentos de rara consumação da estética neo-romântica, atingindo, adentro dos seus padrões e valores, uma qualidade que não merecia o desgaste pela oratória oficiosa do regime salazarista, nem a ostracização pelo terrorismo cultural da oposição ao Estado Novo — nem, ainda, o alheamento, por ignorância, dos leitores e críticos de hoje.“.
Nesta poesia, além de uma leitura pessoalizada da história pátria, há uma inquietação de si onde a presença do homem religioso se instala. Muitos são os belos poemas onde encontramos uma intensa expressão de sentimento, servidos por uma oficina sem falhas. Escolhi alguns.
Soneto XL
Triste contemplo o vão dobrar dos anos
E fico-me a cismar, de olhos perdidos…
Quimeras, onde pus os meus sentidos,
Agora, não sois mais que desenganos!
Restam desilusões, amargos danos,
De tudo quanto amei, dos sonhos idos!
Surda aos meus rogos, surda aos meus gemidos,
A nau do Tempo solta os largos panos!
Como quem, fascinado pela Morte,
Detém o olhar, em fúnebre transporte,
Num campo de batalha, cheio de ossos;
Assim, os olhos vagos alongando
Sobre o curso do tempo miserando,
Mudamente contemplo os meus destroços!
in A NOITE HUMANA [1928]
Soneto XXV
Pisei o pó de todas as estradas,
— Olhos rasos de sonho e imensidade, —
Em busca dessa esplêndida Verdade,
Que descansa em paragens ignoradas.
Mas do fulgor das místicas jornadas,
Em que pus minha fé, minha ansiedade,
Restam apenas fumos de saudade
E um turbilhão de sombras espantadas!
E, agora, neste cerro, onde Jesus
Me vem falar do Céu e onde eu quisera
Dormir, enfim, o sono perenal;
Vejo, na espuma alvíssima da Luz,
Reaparecer, ao longe, uma quimera,
Que ressuscita ainda por meu mal!
in A NOITE HUMANA [1928]
Incerto
Choro, choro por mim! Uma saudade
E um longo adeus abraçam-se comigo;
Triste espectro da Ausência, eu não consigo
Volver à minha torva humanidade!
Creio ser luz no sonho que me invade:
Acordo em sombras e, entre sombras, sigo…
Oh duro, crudelíssimo castigo
De quem busca nos sonhos a verdade!
Em certa hora triste, a Noite veio,
E, doida, me levou; ainda sinto
O seu beijo de treva e o meu enleio!
Desfeito em sombra, evoco o sol extinto:
Mas — ai de mim! — escuridões tacteio,
Perdido no meu próprio labirinto!
in O ÚLTIMO LUSÍADA [1913]
Outro aspecto na poesia de Mário Beirão, é a pintura do sentimento da paisagem, onde alguns belos poemas surgem:
Fragmento do poema O VENTO
…
Erma planura,
Sem fontes, sem ternura,
Indiferente à vida!
Estagnação de paz; esquecimento;
Palpitações do vento,
De leve, sobre a urze ressequida…
…
in PASTORAIS [1923]
GRANADA
Todo em acentos ásperos, agrestes,
Sobre Granada, à tarde, adeja um canto,
Que se requebra em curvas de ais… enquanto
As roseiras enlaçam os ciprestes!
Oh, que volteios fúnebres são estes?
(Pálida, à tarde torna-se de espanto…)
O canto freme, ondeia… irado e santo,
Verte agruras e lágrimas celestes!
É uma voz de saudade e acerbas penas,
Que relampeja… e, líquida, se entorna,
Em vagas de paixão, na tarde morna…
E um estranho perfume se descerra
De oculta flor… por entre sombras, erra,
Fugindo como o sangue das arenas…
in OIRO E CINZA [1946]
CAIR DA TARDE EM ASTORGA
Cai a tarde em Astorga… À branda aragem
Melancolias íntimas segreda…
Vai-se gastando, desbotando, a seda
Do seu manto translúcido de Imagem…
Morre, deixando em cismas a paisagem:
Certa flor, que emurchece; esta vereda;
O plaino raso; um choupo que se queda,
Vago de outono, — lívida a folhagem…
Os anjos se suspendem para vê-la
Em ascensão, — entre asas, lírios, palmas…
(De mudas preces, de ilusões, se estrela…)
Parte, a sorrir… divinamente absorto,
Tremula o seu sorriso: é cor das almas,
Que velam, noite fora, o Senhor-Morto…
in OIRO E CINZA [1946]
Fragmento de “GRANADINA’
Ficou, na tarde triste,
Um sussurro que, pálido, falece;
E falecendo, logo reaparece;
Já deixa de existir… já, outra vez, existe…
Perfuma de saudade a voz da brisa,
E tudo, em derredor, melancoliza…
…
Termino esta visita breve com o poema AUSÊNCIA, do qual escreveu Jorge de Sena: …é um dos mais perfeitos da nossa língua.
AUSÊNCIA
Nas horas do poente,
Os bronzes sonolentos,
— Pastores das ascéticas planuras —
Lançam este pregão ao soluçar dos ventos,
À nuvem erradia,
Às penhas duras:
— Que é dele, o eterno Ausente,
Cantor da nossa vã melancolia?
Nas tardes duma luz de íntimo fogo,
Rescendentes de tudo o que passou,
Eu próprio me interrogo:
— Onde estou? onde estou?
E procuro nas sombras enganosas
Os fumos do meu sonho derradeiro!
— Ventos, que novas me trazeis das rosas,
Que acendiam clarões no meu jardim?
— Pastores, que é do vosso companheiro?
— Saudades minhas, que sabeis de mim?
in PASTORAIS [1923]
Poemas transcritos de Mário Beirão, Poesias Completas, INCM, Lisboa, 1996.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Emile Bernard (1868-1941), Mulheres Bretãs com guarda-sol, de 1892.
* Cartas de Fernando Pessoa a Mário Beirão
Fernando Pessoa foi admirador confesso da poesia de Mario Beirão quando esta se esboçava e os primeiros poemas surgiam em revista. Dessa admiração deu conta por carta ao poeta, por vezes de forma ditirâmbica, como quando escreve ser a poesia de Mario Beirão à época, superior à poesia de John Keats, sem mais.
Na correspondência havida deixou Fernando Pessoa relato da sua própria fase de criação, em termos e relevância que vale a pena conhecer.
São prosa do melhor do poeta, esclarecedora para o conhecimento da biografia, e preciosa sobre o surgimento dos heterónimos importantes. As cartas correspondem a cerca de ano e meio desde Dezembro de 1912 a Julho de 1914, com maior número durante o ano de 1913. Podem encontrar-se na edição da Correspondência (1905-1922) feita por Manuela Parreira da Silva para Assírio & Alvim, Lisboa 1999.