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Afasto-me das graves matérias com que ultimamente tenho ocupado o blog, para dar conta de mais uma inventiva forma de falar poeticamente do amor e do prazer de o fruir.
O poema, incluído no século XV por Baena no seu Cancioneiro, foi considerado, na autorizada opinião de Menendez Pelayo, o melhor poema de amor deste cancioneiro.
É, pois, a voz e inspiração de Diego de Valência (c.1350-c.1412), franciscano e homem tido no seu tempo como sábio de vários saberes, que vos trago. Autor de poemas filosóficos e teológicos, não fugiu ao erótico e mesmo ao burlesco e obsceno.
Pelo que deixou escrito, os saberes do amor não lhe deviam ser estranhos, ainda que no poema de hoje, talvez para salvar aparências, refira:
…
A entrada do vergel
a mim foi sempre defesa,
mas, amigos, não me pesa
por bem saber o que há nele;
Encontramos a abrir o poema um vergel [pomar, jardim, horto] por metáfora do sexo de uma jovem mulher onde:
Maçãs e muitas romãs / o cercam por toda a parte; / não há homem que se farte / de suas frutas temporãs; / …
Não é de forma alguma abusiva a leitura do poema como metáfora do acto sexual e do seu prazer, e nela sou acompanhado por outros.
Ao ler o poema com esta chave, e em remate do gozo erótico, conclui o nosso autor:
…
é mais doce do que o mel
o orvalho que dele mana,
que toda a tristeza sana
o prazer que mana dele.
Temos assim que para início do acto o nosso poeta nos conta:
Num vergel mui deleitoso / entrei por minha ventura, / onde achei toda a doçura / e prazer muito gostoso;
…
Em tempos sem contraceptivos, o risco de gravidez está presente, e o nosso poeta lembra-o logo a seguir:
…
e causado por natura, / de morar mui perigoso.
…
No resto segue o detalhe dos prazeres com imagens de fruta — não há homem que se farte — e harmonias concorrentes com o canto dos pássaros — que fazem dormir de amores. —, acrescentando em remate a explícita referência de quanta doçura emana das fontes onde o prazer vive, e que referi antes.
Frei Diego de Valência (c.1350-c.1412)
1.9.6.1 — Estes versos fez o dito Mestre Frei Diego por amor e louvores de uma donzela que era mui formosa e respalndecente, da qual estava mui enamorado.
Num vergel mui deleitoso
entrei por minha ventura,
onde achei toda a doçura
e prazer muito gostoso;
a entrada foi escura
e causado por natura,
de morar mui perigoso.
Em muito espessa montanha
este vergel foi plantado,
por toda a parte cercado
por ribeira muito estranha:
quem alguma vez se banha
em sua fonte perenal,
pelo curso natural,
tanta doçura o engana.
Maçãs e muitas romãs
o cercam por toda a parte;
não há homem que se farte
de suas frutas temporãs;
mas, amigos, não são sãs
para quem delas muito usa,
pois gozando-as não se escusa
a que não faltem maçãs.
Calhandras e ruisenhores
nele cantam noite e dia,
fazendo alta melodia
além variações multicolores;
e outras aves melhores
papagaios, filomelas;
cantam sereias serenas
que fazem dormir de amores.
A entrada do vergel
a mim foi sempre defesa,
mas, amigos, não me pesa
por bem saber o que há nele;
é mais doce do que o mel
o orvalho que dele mana,
que toda a tristeza sana
o prazer que mana dele.
(Cancioneiro de Baena)
Tradução de José Bento, Antologia da Poesia Espanhola das Origens ao Século XIX, Assírio & Alvim, Lisboa 2001.
Acrescento o original castelhano:
Este dezir fixo e ordenó el dicho Maestro Fray Diego por amor e loores de una donzella que era muy fermosa e muy resplandeciente, de la cual era muy enamorado.
En un vergel deleitoso
fui entrar por mi ventura,
do fallé toda dulçura
e plazer muy sabroso;
……………………………….
la entrada fue escura,
obrado fue por natura
de morar muy peligroso.
En muy espesa montaña
este verger fue plantado,
de todas partes cercado
de ribera muy estraña;
al que una vez se baña
en su fuente perenal,
segun curso natural,
a duçura lo engaña.
Pumas e muchas milgranas
lo cercan de toda parte,
non sé home que se farte
de las sus frutas tempranas;
mas, amigos, non son sanas
para quien de ellas mucho usa,
que usando non se escusa
que non menguen las mançanas.
Calandras e ruiseñores
en él cantan noche e día,
e fazen grant melodía
en deslayos e discores,
e otras aves mejores,
papagayos, filomenas,
en él cantan las serenas
que adormecen con amores.
La entrada del vergel
a mí fué siempre defesa,
mas, amigos, non me pesa
por saber cuanto es en él;
es mas dulce que la miel
el rocío que d’él mana,
que toda tristeza sana
el plazer que sale d’él.
Versão sumariamente modernizada por Álvaro Alonso em Poesía de Cancionero, Ediciones Cátedra, Madrid, 1999.