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Amor e Medo — poema de Casimiro de Abreu

11 Sábado Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Brasileira antiga

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Casimiro de Abreu

Temos um problema sério no poema de Casimiro de Abreu (1839-1860), Amor e Medo. Senão vejamos: um jovem par de namorados encontra-se: estamos em meados do século XIX no Brasil, entre gente de classe média. Com os interditos sociais da época, nestes encontros nem pensar nas intimidades que o desejo e a juventude exigem. Não aguentando mais, o jovem parte. A namorada, despeitada suspira:

…

— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!

…

 

Afinal, como a jovem está equivocada, elucida-nos o poeta a seguir:

…

Como te enganas! meu amor é chama

Que se alimenta no voraz segredo,

…

 

 

E para que não tenhamos dúvidas do que a voracidade deste fogo seria capaz, aí temos em toda a segunda parte do poema a descrição detalhada:

…

Ai! se eu te visse em languidez sublime,

…

Olhos cerrados na volúpia doce,

Os braços frouxos — palpitante o seio!…

…

Trémula a fala a protestar baixinho…

Vermelha a boca, soluçando um beijo!…

…

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!

Ébrio e sedento na fugaz vertigem

…

 

 

É claro que coisa tão magnífica, para ter a cor da época, terá que vir embrulhada em vocábulos de vileza, e por isso, aqui estão:

…

Vil, machucara com meu dedo impuro

As pobres flores da grinalda virgem!

 

Vampiro infame, eu sorveria em beijos

Toda a inocência que teu lábio encerra,

E tu serias no lascivo abraço,

Anjo enlodado nos paúis da terra.

…

 

E pronto! Aí está consignado o que amor procura. Depois

… desperta no febril delírio,

— Olhos pisados — como um vão lamento,

Tu perguntaras: — que é da minha coroa?…

Eu te diria: —  Desfolhou-a o vento !…

 

 

Num aparte: não creio que à época, ou hoje, alguém tomasse à letra as óbvias metáforas de dedo impuro, grinalda virgem ou lascivo abraço, supondo que o rapaz com um qualquer dedo da mão impediria a rapariga de levar até ao casamento as flores da sua virgindade, desflorando tão preciosa grinalda com um vulgar abraço. É desnecessária qualquer explicação adicional, suponho. A última quadra citada traduz sem equívocos os acontecimentos… que sucederiam se o namorado não fugisse. E esse é o problema sério que referi a abrir: perante o desejo, deve o homem pensar com que cabeça?

O rapaz precisou da cabeça bem fria nesta aventura poética…

É tempo de ler o poema na totalidade:

 

 

Amor e Medo

 

Quando eu te fujo e me desvio cauto

Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,

Contigo dizes, suspirando amores:

— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!

 

Como te enganas! meu amor é chama

Que se alimenta no voraz segredo,

E se te fujo, é que te adoro louco…

És bela,— eu moço; tens amor,— eu medo!…

 

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,

Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.

Das folhas secas, do chorar das fontes,

Das horas longas a correr velozes.

 

O véu da noite me atormenta em dores,

A luz da aurora me entumece os seios,

E ao vento fresco do cair das tardes

Eu me estremeço de cruéis receios.

 

É que esse vento, que na várzea — ao longe,

Do colmo o fumo caprichoso ondeia,

Soprando um dia tornaria incêndio

A chama viva que teu riso ateia!

 

Ai! se abrazado crepitasse o cedro,

Cedendo ao raio que a tormenta envia,

Diz: — que seria da plantinha humilde

Que à sombra dele tão feliz crescia?

 

A labareda que se enrosca ao tronco

Torrara a planta qual queimara o galho,

E a pobre nunca reviver pudera

Chovesse embora paternal orvalho!

 

II

 

Ai! se eu te visse no calor da sesta,

A mão tremente no calor das tuas,

Amarrotado o teu vestido branco,

Soltos cabelos nas espáduas nuas!…

 

Ai! se eu te visse, Madalena pura,

Sobre o veludo reclinada a meio,

Olhos cerrados na volúpia doce,

Os braços frouxos — palpitante o seio.

 

Ai! se eu te visse em languidez sublime,

Na face as rosas virginais do pejo,

Trémula a fala a protestar baixinho…

Vermelha a boca, soluçando um beijo!…

 

Diz: — que seria da pureza de anjo,

Das vestes alvas, do candor das asas?

— Tu te queimaras, a pisar descalça,

— Criança louca, — sobre um chão de brasas!

 

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!

Ébrio e sedento na fugaz vertigem

Vil, machucara com meu dedo impuro

As pobres flores da grinalda virgem!

 

Vampiro infame, eu sorveria em beijos

Toda a inocência que teu lábio encerra,

E tu serias no lascivo abraço

Anjo enlodado nos paúis da terra.

 

Depois… desperta no febril delírio,

— Olhos pisados — como um vão lamento,

Tu perguntaras: — que é da minha coroa?…

Eu te diria: — Desfolhou-a o vento !…

 

Oh! não me chames coração de gelo!

Bem vês: traí-me no fatal segredo.

Se de ti fujo, é que te adoro e muito,

És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!…

Outubro — 1858

in Casimiro de Abreu, As Primaveras, Novíssima edição acrescentada de novas poesias e da Scena Dramática O Camões e o Jáo e Dois romances em prosa, Lisboa, Imprensa de J. G. de Sousa Neves, 1875.

Modernizei a ortografia.

Abre o artigo a imagem do detalhe de uma pintura de Edouard Manet (1832-1883), Chez le père Lathuille, de 1879. A pintura pertence ao Museu de Belas-Artes de Tournai.

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Um improviso sobre a saudade pela Marquesa de Alorna e o poema de Borges de Barros

14 Segunda-feira Jan 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Brasileira antiga, Poesia Portuguesa antiga

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Alcipe, Borges de Barros, Marquesa de Alorna

Hoje transcrevo uma glosa sobre a saudade escrita pela Marquesa de Alorna (1750-1839), com pretexto num elegante poema de 1814, A flor saudade, da autoria de Domingos Borges de Barros (1780-1855), Visconde de Pedra Branca. São ambos daqueles poemas que os homens perderam o gosto de escrever e os leitores de ler. Encontrei-os num livro chamado Poesias oferecidas às Senhoras Brasileiras por um Bahiano, editado em Paris em 1825 da autoria do Visconde de Pedra Branca.

 

Medida de um tempo de convencionalismo no trato e elegantes gentilezas de sociedade, eles são por um lado o reflexo cultural de um viajado barão brasileiro, senhor de engenho, formado em Coimbra e alto funcionário da corte do imperador D. Pedro I, e por outro, a ilustração da poesia sensível da Marquesa de Alorna, temperada numa experiência de vida por vezes dolorosa. De caminho podemos medir a distância entre uma poesia graciosa e uma dolorosa meditação existencial pela poesia.

 

 

Improviso da Marqueza de Alorna sobre o poema A flor saudade, lançado quando da sua leitura num serão:

 

MOTE

Do Doutor Domingos Borges de Barros.

 

Tu és minha companheira,
Ó triste e animosa flor!
Se tens de saudade o nome
Da saudade eu tenho a dor.

 

 

Glosa

A Parca em seu fuso enrola
Os meus aflitos instantes,
Põe-me os prazeres distantes,
E a fatal tesoura amola.
Nem ao menos me consola
Memorar a vida inteira;
Como exalação ligeira
Tudo fugiu: que me resta?
Tu, meditação funesta.
Tu és minha companheira.

Contemplando a natureza,

Os astros, a terra, o céu,
Tudo, tudo esmoreceu,
Tudo amortece a tristeza.
Murchou do campo a beleza,
As boninas não têm cor
Só tu conservas vigor,
Saudade, que açouta o vento;
Símbolo do meu tormento,
Ó triste e mimosa flor.

Flor funesta! que não sentes

O que à vista significas,
Que hipocritamente explicas
O que insensível desmentes.
Não insultes descontentes
Que a dor aguda consome;
Teme que vingança tome
O céu desse atrevimento,
E que te desfolhe o vento,
Se tens de saudade o nome.

Nome que difere tanto

Da cruel realidade,
Como a sombra da verdade,
O céu dos sítios do pranto.
Se gemo, se a voz levanto,
Se inspiro aos mortais terror,
É que o meu sedento ardor
De Tântalo a sede excede;
Com meu mal algum se mede,
Da saudade eu tenho a dor.

 

 

Leia-se agora o poema/pretexto deste improviso:

 

 

A flor saudade

Tu és minha companheira,
Ó triste e animosa flor!
Se tens de saudade o nome
Da saudade eu tenho a dor.

Recebe este frio beijo,

Beijo de melancolia,
Tem de amor toda a doçura,
Mas não de amor a alegria.

Onde te pegou Marília?

Dize, onde um beijo te deu?
Mostra o lugar, nele quero,
Dar-te eu outro beijo meu.

Se Marília quer que exprimas

O que ela sente por mim,
Porque murchas? Não me lembres
Que amor também passa assim.

Marília em tudo te iguala,

Linda e delicada flor,
Mas infeliz se em seu peito,
Quanto duras, dure amor!

Tu venturosa cuidavas,

Quando o meu bem te colheu,
Que morreras em seu seio,
Qual morri outrora eu.

Longe d’haste, em que Favónio

Ia contigo brincar,
Em vez de orvalho te sentes,
Só de lágrimas banhar.

Flor infeliz!… Porém eu,

Quanto mais infeliz sou!…
Nada te disse Marília
Quando ela a mim te enviou?

Ah! Se tu saber puderas

Quanto amor, quanta ternura,
Se souberas das delícias
Julgaras da desventura.

Mas que digo! Não me creias,

Não me vás atraiçoar,
Saudade, é crime de amor
Seus mistérios divulgar.

Domingos Borges de Barros

Como também era de uso, o livro do Visconde de Pedra Branca recolhe poesias de outros. Entre esses, inclui uma colecção de poemas em que várias opiniões se cruzam sobre o que é amor, amizade, e casamento. Num outro poema, uma senhora agradece ao poeta ter interferido a favor dos direitos das mulheres. Em que circunstâncias e extensão não ficamos a saber.
O livro de Borges de Barros, fazendo uso das variadas formas poéticas de regra ao tempo, da ode ao epigrama, no seu conteúdo leve adequa-se ao que seria de bom tom uma senhora ler à época. Se algum pensamento mais atrevido surge, logo vem a desculpa de ter sido um sonho, coisa que nenhum humano pode impedir, como se sabe. O madrigal seguinte é disso retrato. Nele o poeta apenas sonhou beijar a jovem, e acariciá-la sob as vestes, o que o faz reclamar de ter acordado:

 

 

A um sonho, madrigal

Endeusado nos teus lábios
Néctar divino bebi,
Aos céus de amor em teus braços
Entre delícias subi.

Do níveo ninho das graças
Iludiu mão atrevida,
Do véu a avareza, dos olhos
Tirana, ao pejo querida.

E vivo!… Lília perdoa
Foi sonhando que o ousei;
Se a alma pode gozar tanto
Dormindo, porque acordei?

 

Escrito em New York em 1811.

 

 

Nota bibliográfica

 

O improviso da Marqueza de Alorna sobre o poema A flor saudade, lançado quando da sua leitura num serão, foi transcrito de Obras Poéticas de D. Leonor D’Almeida Portugal Lorena e Lencastre, Marqueza d’Alorna, conhecida entre os poetas portugueses pelo nome de Alcipe, Lisboa, Imprensa Nacional, 1844.

O Poema A flor saudade foi transcrito de Parnaso Lusitano vol 3 e confrontado com a versão do livro de Borges de Barros, Poesias oferecidas às Senhoras Brasileiras por um Bahiano. Esta edição encontra-se disponível on-line no site da Biblioteca Nacional de Lisboa (purl). Nela o poema vem incompleto, pois uma página que lhe corresponde (158) encontra-se em branco.
Entre as divergências nestas duas edições do poema, em Parnaso Lusitano vol 3 e Poesias oferecidas…, adoptei as soluções que me pareceram mais coerentes para a inteligência do poema, conhecida que é a proliferação de gralhas menores nestas edições antigas.

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