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Transcrevo dois poemas de Paul Celan (1920-1970) acompanhados de citações de Y. K. Centeno extraídas da sua introdução à Antologia Poética de Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde.
O amor está morto na obra de Paul Celan. Perdeu a qualidade redentora. O que dele fica são apenas fragmentos, imagens que não se ordenam numa estrutura superior unificada. Porque esse é o limite que atingem, o limiar que ultrapassam: o da unificação harmoniosa num universo e numa relação de que o amor foi brutalmente cortado.
Y. K. Centeno
O TEU
ALÉM-ESTAR esta noite,
Com palavras te trouxe de volta, aí estás,
tudo é verdadeiro e um esperar
pelo verdadeiro.
O feijão trepa frente
à nossa janela: imagina
quem a nosso lado cresce e
o vê.
Deus, assim o lemos, é
parte de nós e um outro, disperso:
na morte
de todas as vidas ceifadas
vinga ele.
Para além
nos conduz o olhar,
com esta
metade
convivemos.
Dir-se-á que Celan guarda ainda, nalguns textos, um ou outro fiapo de cor e luz. Mas isso torna a realidade ainda mais pungente: nunca o fiapo ilumina um olhar, o seu ou o de outrem. Não é luz condutora, é antes marca de uma fractura irredutível, é memória, é saudade, é desgosto profundo pelo que se perdeu, o todo, o tudo da vida.
Y. K. Centeno
Árvore Cintilante
Uma palavra
pela qual te perdi com prazer:
a palavra
Jamais.
Era,
e por vezes também tu o sabias,
era
uma liberdade.
Nadávamos.
Ainda te lembras que eu cantava?
Com a árvore cintilante cantava, com o leme.
Nadávamos.
Ainda te lembras que nadavas?
Aberta estavas ante mim,
estavas ante mim, estavas
ante mim ante
minha ante-
cipada alma.
Eu nadava por nós dois. Não nadava.
Nadava a árvore cintilante.
Ela nadava? Havia
um charco em volta. Era o lago infinito.
Negro e infinito, assim suspenso,
assim suspenso, mundo abaixo.
Ainda te lembras que eu cantava?
Esta —
oh, esta deriva.
Jamais. Mundo abaixo. Eu não cantava. Aberta
estavas ante mim ante
a alma errante.
Poemas do livro A Rosa de Ninguém [Die Niemandsrose] (1963), À memória de Ossip Mandelstamm.
Poemas transcritos de Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que Importa, Cem Poemas, tradução e posfácio de Gilda Lopes Encarnação, Relógio d’Água, Lisboa, 2014.
A poesia de Paul Celan é uma poesia solitária em busca de um destinatário atento. A linguagem, extremamente privada e opaca, reinventada, se quisermos, a estranheza das imagens e das associações, com especial incidência na obra tardia, não permitem uma interpretação linear ou unívoca por parte do (providencial) leitor.
Do posfácio de Gilda Lopes Encarnação.
Citações de Y. K. Centeno transcritas de Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde, Antologia Poética, Selecção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno, Edições Cotovia, Lisboa, 1993.
Notícia bibliográfica
O leitor interessado na obra do poeta, e que não domine o alemão, encontra-a integralmente traduzida em espanhol na Editorial Trotta de Madrid, Paul Celan obras completas, em tradução de José Luis Reina Palazón (a primeira tradução integral para uma língua estrangeira da obra de Paul Celan), 7ªedição em 2013.
Em português, com tradução e posfácio de João Barrento, Livros Cotovia editou em 1998 (e reimpressão em 2008), Poemas do Espólio, antologia denominada A Morte É Uma Flor.
A antologia dos poemas traduzidos para inglês pelo poeta Michael Hamburger, Poems of Paul Celan, editada por Anvil Press Poetry é outra edição a considerar com 172 poemas traduzidos, 1995, reimpressão em 2013.
Nota
A imagem que abre o artigo mostra uma pintura minha, Azul 11, óleo s/tela, de 2003/4.
Obrigado pelo comentário, pelos parabéns, e por seguir o blog com tanto interesse; é um estímulo para continuar.
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Muito bom receber seus posts aqui no Brasil. Eu desconhecia este poeta e infelizmente não falo alemão, então, provavelmente não o teria lido sem sua colaboração. Obrigada! Continuo aguardando seus posts sempre com curiosidade! Parabéns pelo trabalho!
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