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O consumo do vinho é desde tempos ancestrais companhia para ocasiões festivas, conduzindo sem dificuldade da euforia à embriaguês ligeira, e motivo de celebração poética desde a longínqua China à Europa.
A dependência do álcool e os comportamentos a ela associados são muito menos frequentes na poesia, e encontram-se na poesia portuguesa quando esta adoptou um ponto de vista realista, acompanhado de um julgamento moral, por finais do século XIX. É dessa época o poema anónimo que no final transcrevo.
No poema lemos, não a alegria eufórica de uma embriaguês pontual, mas o recurso ao vinho como forma de evasão à dureza do quotidiano:
…
Com uma garrafa do fino,
Faço frente ao meu destino,
E o mundo… deixo-o correr!…
…
Surge depois a descolagem da responsabilidade pessoal induzida por uma total dependência do álcool:
…
E eu… no chão, mesmo, deitado,
Durmo… e não me dá cuidado
O que vai… nem e que veml…
Narrado na primeira pessoa, se por um lado é a ligeireza eufórica da embriaguês que no seu ritmo a linguagem do poema reflecte, por outro, no desenvolvimento narrativo do poema passamos das dificuldades da vida à forma como o vinho as dilui: Sofri muito… mas embora… / Graças ao bom vinho, agora / Já p’ra mim não há paixões! / …, fazendo parecer que estas desaparecem. E à medida que a alcoolização se consolida lemos a entrega total à depêndencia:
…
Dinheiro… tendo-o p’ra vinho,
Tenho tudo… e sou feliz!
Nunca mais me vi faminto!
…
O julgamento moral do homem surge quando o poeta refere a situação familiar do protagonista e o seu alheamento em relação à responsabilidade da sua causa, no que foi um estereótipo à época, provavelmente ancorado numa realidade frequente:
Quando a mulher se consome,
Vendo os filhos a chorar…
Coitados… porque têm fome,
E não há pão p’ra lhes dar;
Eu bebo… e, depois de quente,
Vejo-me alegre e contente,
Julgo que tudo vai bem!
…
Poema
Um Devoto de Baccho
Oh vinho!… Licor famoso!
A ventura devo-a a ti!
Quanto hoje no mundo gozo,
Quanto outrora padeci!
Na mais afanosa lida,
Creio, só, que, em toda a vida,
Nunca tive indigestões!…
Fomes… sedes… chuvas… frios…
Tudo atacava os meus brios,
E andei sempre aos trambolhões!
Sofri muito… mas embora…
Graças ao bom vinho, agora
Já p’ra mim não há paixões!
Já não sou pobre e mesquinho…
– Do meu rosto a cor o diz –
Dinheiro… tendo-o p’ra vinho,
Tenho tudo… e sou feliz!
Nunca mais me vi faminto!
Chuva… se cai… não a sinto…
Nem tornei a arrefecer!
Sem chorar a minha sorte,
Contra os revezes sou forte,
Nenhum me pode abater!
Com uma garrafa do fino,
Faço frente ao meu destino,
E o mundo… deixo-o correr!…
Quando a mulher se consome,
Vendo os filhos a chorar…
Coitados… porque têm fome,
E não há pão p’ra lhes dar;
Eu bebo… e, depois de quente,
Vejo-me alegre e contente,
Julgo que tudo vai bem!
Dizem que o dinheiro é raro,
Que o milho corre tão caro,
Que lhe não chega ninguém…
E eu… no chão, mesmo, deitado,
Durmo… e não me dá cuidado
O que vai… nem e que veml…
Transcrito de uma Folha Volante sem data nem autor, presumivelmente de final do séc XIX, atendendo à ortografia.
Transcrição com ortografia modernizada.
Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma pintura de David Teniers o Jovem (1610-1690) – Três fumadores e bebedores no interior de uma taberna de meados do século XVII.