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Quando leio a poesia romântica de ambiente medievo, vêm-me à lembrança as histórias de cowboys que à entrada da adolescência devorava semanalmente em livrinhos pequeninos de uma colecção 6 balas dos quais perdi completamente o rasto.
Tal como naquelas histórias de cowboys, trata-se nesta poesia de narrativas de coragem salpicadas de crueldade e heroísmo a que subjaz a luta entre o bem e o mal.
O pano de fundo é a luta entre cristãos e muçulmanos de origem árabe ou mourisca, durante a reconquista cristã em Portugal e Espanha.
Formalmente são poesia rimada, em geral com a rima sonora frequentemente em “ar”, e desenvolvimento narrativo explícito e linear. Às peripécias narradas acrescenta-se por vezes um qualquer amor contrariado por questões de linhagem ou interdição religiosa, qual seja o amor entre um(a) cristã(o) e um(a) moiro(a).
A este quadro geral escapa o poema que a seguir transcrevo, O canto do árabe, escrito por António José de Sousa Almada (1824-1874). Nele o poeta não desenha um quadro de luta mas pinta o retrato de um cavaleiro árabe, mostrando um indivíduo arrogante e sanguinário, pleno de jactância e segurança de si:
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Treme o Sheik da altiveza / De meus olhos,— da nobreza / Com que fulgem com viveza / Como astro lá no Céu!
…
a que acrescenta aquele toque quase infantil que muitos adultos cultivam: a terra onde nasci é o melhor lugar do mundo, de todos os pontos de vista:
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Que me importa a Europa a mim? /Nâo tem coisas como cá:
O surgir do Sol aqui, /É diferente do de lá;
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Se lá cresce a laranjeira / Pelas encostas do val
Aqui, viceja a palmeira / Sobre as ondas do areal:
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Pintada a origem e a paisagem, surgem os lances da acção:
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Mal aqui rompe a manhâ /Sai o árabe do Kan,
Prende à cinta o yatagan, / O trabuco e o punhal!
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a que se segue a jactâncias que acima referi:
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Venha aqui o viajante / Contar feitos lá do Cid …
Que se me ponha adiante / A disputar-me o Dgerid;
Que lhe posso aqui mostrar / Num só golpe que hei de dar
A cabeça a rebolar / Decepada nessa lide.
…
E no meio de toda a arrogância surge a nota do romantismo europeu dando conta do carácter sagrado do amor do cavaleiro à mulher escolhida, aqui entre as do harém, comparando este seu amor ao do Profeta ao Alcorão:
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Faço-a rainha, e senhora / Deste ardente coração;
Amo-a tanto, quanto adora /O Profeta o Alcorâo;
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Na mesma época outros poemas sobre nobres árabes ou mouriscos há, estou a lembrar-me de O Canto do Moiro de Francisco Palha ou Abd-El-Kader de Serpa Pimentel, mas são retratos de vingança O Canto do Moiro, e de vencido Abd-El-Kader, não dando conta da força vital que neste O Canto do Árabe transpira.
Eis o poema na totalidade
O CANTO DO ÁRABE
Sou das orlas do Oriente:
Desta plaga não avara
Nos feitos da forte gente,
Das tribos de força rara;
Sou Árabe e muçulmano,
Sou senhor e soberano;
Se me ofendem… sou tirano
Dos desertos té Sahara.
Destas terras sou eu rei,
Quanto abrange a vista,— é meu:
Quem promulga aqui a lei,
Aba ko de Alá — sou eu.
Treme o Sheik da altiveza
De meus olhos,— da nobreza
Com que fulgem com viveza
Como astro lá no Céu!
Nos divãs do meu harém
Tenho formosas sem fim;
Reclinadas com desdém,
A suspirarem por mim.
De seus carinhos sobejos
Adormeço nos desejos,
Embalado pelos beijos
De seus labios de carmim.
E qual Iouca mariposa
Que namora toda a flor:
Mas reserva a mais formosa
Pra beijar com mais ardor;
Beijo o seio que palpita,
Amo a alma que se agita,
Mas escolho a favorita
Pra lhe dar o meu amor.
Faço-a rainha, e senhora
Deste ardente coração;
Amo-a tanto, quanto adora
O Profeta o Alcorâo;
E baixo a fronte orgulhosa
Sob os seus lábios de rosa,
Quando os descerra, vaidosa
Como a rosa do Japão!
Que me importa a Europa a mim?
Nâo tem coisas como cá:
O surgir do Sol aqui,
É diferente do de lá;
Lá, não estruge o vulcão,
Nem há uivos de leão,
Nem o árabe, no châo
Prosta a fronte por Alá!
Se lá cresce a laranjeira
Pelas encostas do val
Aqui, viceja a palmeira
Sobre as ondas do areal:
Mal aqui rompe a manhâ
Sai o árabe do Kan,
Prende à cinta o yatagan,
O trabuco e o punhal!
E se nos ares se ateia
Ignea chama;—e rouco som
Sai fervente com a areia
Nas golfadas do Simuon;
Roja o corpo, e vaga incerto
Sobre as ondas do deserto,
A correr em leito aberto
Como as águas do Cedron!
Mas se das garras do perigo
Eu me escapo com valor;
E a vista do inimigo
Vem trazer-me outro maior;
Então parto a toda a brida,
Como um raio na corrida,
Embebendo em cada ferida
O meu sedento furor.
Venha aqui o viajante
Contar feitos lá do Cid …
Que se me ponha adiante
A disputar-me o Dgerid;
Que lhe posso aqui mostrar
Num só golpe que hei de dar
A cabeça a rebolar
Decepada nessa lide.
Traz em braza a fronte ardente
Quando nasce aqui o sol;
Ferve o sangue do oriente
No matutino arrebol;
Ergue a fronte soberana
A Naka que já se ufana
De mirar a caravana
Serpeando arida mole.
Roi de inveja aos potentados
Meu rico manto de Emir;
E meus cofres entulhados
Do oiro puro de Ofir,
Escarneço dos pelouros,
Se manto quis e tesouros
Fui ganha-los entre louros,
C’os golpes que eu sei brandir.
Sou senhor e soberano
Dos desertos, té Sahara
Sou árabe e muçulmano
Das tribos de força rara:
Sou das orlas do oriente
Sou Emir da forte gente
Sou da raça mais valente
Desta plaga não avara.
Nota bio-bibilografica
Informa a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira que António José de Sousa Almada (1824-1874) nasceu na Ilha da Madeira e foi poeta. Mais informa que as suas obras foram apreciadas na época e andam dispersas pelas publicações do tempo. Teve vida aventurosa ao fazer-se homem de negócios. Acrescenta que na política seguiu o Marechal Saldanha, o qual depois do 19 de Maio o fez governador de Castelo Branco.
Enquanto poeta, e já transcrevi no blog o seu poema Os Beijos, à desenvoltura da versificação alia-se a originalidade do ponto de vista com que trata os assuntos caros à poesia do romantismo.
Este poema, O Canto do Árabe, foi transcrito de Lísia Poética vol lll, Colecção de Poesias Modernas de Autores Portugueses publicada por José Ferreira Monteiro, Rio de Janeiro, 1848.
A imagem de abertura reproduz uma das pinturas feitas por volta de 1576 para uma edição de Shahnameh, Livro dos Reis, escrito por Ferdowsi (c. 940-1020), no qual se relatam os feitos de reis do Irão até à invasão árabe. As miniaturas dessa edição são atribuídas a Sâdeqi-Beg, Mihrab e Siyâvosh o Georgiano.
Shahnamed é um poema épico com cerca de 50.000 dísticos e conta-se entre os mais belos poemas épicos que a humanidade herdou, ao lado da Odisseia, Ilíada, Eneida, Lusíadas e pouco mais.
Minha senhora, encontra a resposta ao que pergunta no final do artigo. Obrigado.
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