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É vasta, variada, e de qualidade média elevada, a obra poética de Francisco Joaquim Bingre (1763-1856). A obra permaneceu inédita na quase totalidade até à edição levada a cabo por Vanda Anastácio entre 2000 e 2005. São 6 grossos volumes e um total de 2089 poemas. Perco-me neles desde que existem, e o prazer de ler é imenso.
Observador acutilante da realidade humana, social e política do Portugal entre as duas Marias rainhas, a I e a II: são quase setenta anos passados à lupa com uma inspiração poética que atravessou escolas e manteve uma originalidade que ainda hoje surpreende e encanta.
As histórias literárias, quando reescritas, dar-lhe-ão o lugar de destaque que merece. Até lá os leitores abertos à descoberta encontram neste corpus poético infindáveis horas de prazer.
Sinceramente não sei por onde começar a dar-vos conta desta poesia que frequentemente me prende: se transcrever o verso mordaz, a meditação existencial, a observação de costumes, as peripécias da juventude ou as vissicitudes de uma vida duríssima, que nos últimos vinte anos do poeta, entre os setenta e os noventa rondou frequentemente a miséria.
Profissionalmente fora escrivão e tabelião em Mira (Aveiro) desde 1801, e em 1834, com a reforma judiciária, foi despedido. Contava à data 70 anos. Viveu os restantes 23 anos quase sempre na maior miséria segundo os relatos contemporâneos que nos chegaram. Por exemplo, conforme cita Inocêncio no seu Dicionário Bibliográfico Português de uma carta do poeta a Costa e Silva:
“Aqui estou viúvo há vinte e cinco anos; aqui tenho enterrado muitos filhos e netos; aqui findarei os tristes dias de oitenta e cinco invernos, vítima da fome e da penúria, com uma filha viúva e cinco netos, sem abrigo, senão o das carcomidas asas deste desditoso velho!“
Também o refere na sua poesia, qual seja um pungente soneto onde à sua madrasta sorte junta as de Camões e Bocage, entre outros:
Velhice e Pobreza (Poetas Pobres)
Soneto 142
Morreu pobre o Camões, pobre o Garção;
Quita e Matos viveram na pobreza;
Bocage teve lances de escasseza,
Muitos dias sofreu falta de pão.
Santos e Silva tinha uma ração
Do Hospital na botica, por fineza.
Parece que capricha a Natureza
Em fechar à poesia a destra não!
Aqueles foram vates de alto espanto,
Que deixaram no mundo eterno nome,
Muitas vezes comendo o próprio pranto;
Tal o Bingre mirrado se consome:
Se os não pode imitar no doce canto,
Ele os imita vítima da fome.
[2072]
O poeta viveu 93 anos. Gozou de fama junto dos escritores românticos, apesar da escassa obra publicada, e aos 89 anos, em 14-12-1852, um grupo de jovens, tendo dado conta da situação de miséria em que o poeta se encontrava, promoveu no Porto um sarau de beneficência com o apoio financeiro de António Bernardo Ferreira (o filho da Ferreirinha, a D. Antónia do vinho do Porto) à cabeça, cujo conteúdo poético foi posteriormente reunido na brochura O Benefício do Poeta Bingre, o qual subsistiu até ao século XXI como a notícia de que Bingre tinha existido e fora alvo da admiração de contemporâneos. Antes, em 1850, e também com fim beneficente, fora editado o folheto O Moribundo Cisne do Vouga com alguns poemas de Bingre.
Fundador, e membro, com Bocage e outros, da Academia das Belas Letras em Lisboa, também conhecida como Nova Arcádia, nela teve o nome de Francélio Vouguense e entre os contemporâneos foi também conhecido como Cisne do Vouga.
Sedutor inveterado, se a poesia fala verdade, avançado na idade, a certa altura escreveu:
…
Um homem que adorou tanto as mulheres,
Quando tem, como eu, longeva idade,
Nas caveiras medita o fim dos seres.
[1358]
E é sobre como o poeta viu o amor ao longo da vida que me decido às transcrições escolhendo tão só alguns sonetos em que o D.Juan se despede e medita sobre a irremediável passagem do tempo.
*
Foi o tempo da minha mocidade
Assaz bem liberal para comigo:
Foi-me sempre risonho e meu amigo,
Enquanto me durou viril idade.
Mas hoje, na fatal caducidade
A afeição me perdeu, e o amor antigo:
É-me escasso, é cruel, é inimigo
Bastantemente meu, não tem piedade.
Quando eu, na minha fúnebre velhice,
Mais dele precisava para escora
Da cansada existência e da tontice,
Me desampara o falso Tempo agora!
Ai, quanto me enganou na meninice!
Quem se pode livrar de mão traidora!
[1402]
Ao Desengano
Já dos males de amor estou curado;
Não me lembram traições de vãs beldades,
Ingratidões, agravos, falsidades:
Já vivo de tudo isso deslembrado.
Não me lembra se amei ou fui amado,
Nem se tive prazer co’as falsidades;
Não conservo desejos, nem saudades;
Vivo todo esquecido do passado.
Graças mil dou ao Santo Desengano,
Que nas águas do Letes sonolento
Me fez largar memórias desse engano.
Tenho limpo de Amor o pensamento.
Esqueci-me, curei todo o meu dano,
Quando no rio entrei do esquecimento.
[1780]
*
Homem cego em paixões, surdo à verdade,
Que te esqueces do barro de que és feito,
De que o pó amassado, em pó desfeito
Reverter para a terra outra vez há-de!
Se sabes que a emprestada quantidade
Deves pagar, por natural direito,
Como vives no mundo satisfeito
Na escravidão da estúpida Vaidade?
No réu ocaso pensa; olha que um dia
As pompas, os brasões, forças, talento,
Se hão-de sumir co’a louca fantasia.
Pensa, pensa no ultimo momento;
Considera que a tua cinza fria
Dispersa levará, pelo ar, o vento.
[1793]
Duas meditações de arrependimento: pois o homem, crente, goza, mas depois pesa-lhe:
*
Cheio de insipidez, triste e sem gosto,
Vivo maquinalmente em ansiedade,
Arrastando o grilhão da longa idade,
Abafando no peito o meu desgosto.
Esvoaçando poisam no meu rosto
Os remorsos da minha mocidade:
Assusta-me a tremenda eternidade,
E o tremendo juiz no trono posto.
Os delitos da minha extensa vida
Tem na sua rectíssima balança
A concha esquerda para o chão pendida.
Desgraçado de mim, se ele não lança
Na direita algum sangue da ferida
De seu lado, onde amor mais peso alcança.
[1398]
**
Vivido tenho assaz: que resta agora
De tão longa existência e tanta dura?
Pedir à madre Terra a sepultura,
Para o pó receber de que é credora.
Vai findar a carreira encantadora;
E os prazeres da mágica doçura
Trocados vejo, em fúnebre amargura,
De uma falsária dita enganadora.
Que resta mais na triste despedida?
Pedir perdão desse estragado uso,
Que fiz no mundo, de uma extensa vida.
A vossos pés, meu Deus, venho confuso
Piedade implorar nesta partida:
Contrito a vós, Senhor, com dor me acuso.
[1400]
Termino com uma serena reflexão sobre a finitude da existência, de par com a constatação, numa originalíssima formulação poética, do extraordinário da máquina humana:
Vai parar esta máquina excelente,
Este raro relógio delicado,
Este moto contínuo humanizado,
Esta assombrosa construção vivente:
A corda vai quebrar, do gasto dente
Da roda que a prendia, tem saltado:
Todo o composto jaz desconcertado,
A pêndula de um fio está pendente.
Trabalhou sobre um eixo de diamante
Julgais oitenta e três em marcha certa
Com muito pouca variação rodante:
Hoje de todo o Tempo o desconcerta,
Pouco trabalha já, durou bastante,
Mas já seu mesmo Autor o não concerta.
[2061]
Os números entre [ ] que seguem os poemas transcritos indentificam os poemas na edição de Vanda Anastácio, Obras de Francisco Joaquim Bingre, colecção Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, Lello Editores, 6 volumes, 2000-2005.
.nos teus olhos cor da noite há sonhos de vidro .poemas de pássaros serenos . ecos suspensos de palavras lentas. em silencio liquido e ainda dormente bebi da tua sede. e por ali nasceu a lua .em sublime desejo. o meu.
…..porque amo a noite. porque amo profundamente a noite.do silencio. esse silencio que fala e envolve até queimar.
…Obrigada pela partilha. Tão boooooom !!!
Luna
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…e façamos de cada noite o dia da nossa alegria.
Belo poema, o que transcreveu. Obrigado.
Encerremos aqui os comentários a pretexto da poesia de Bingre. Pode sempre escrever para o e-mail do blog, viciodapoesia@gmail.com. Será um prazer. Até breve.
Deixo-lhe, entretanto, um poema de Saúl Dias:
A chama ainda perdura
iluminando a noite,
indo acordar os astros…
vestindo de alabastros
as ruas derradeiras…
desdobrando bandeiras
lá no topo dos mastros…
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Por favor, de quem é a imagem?
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A imagem mostra uma pintura de Lyonel Feininger. Como habitualmente, o nome do ficheiro da imagem contém o nome do artista. Cumprimentos
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Avec le temps…
Avec le temps, va, tout s´en va
On oublie le visage et l´on oublie la voix
Le cœur, quand ça bat plus, c´est pas la peine d´aller
Chercher plus loin, faut laisser faire et c´est très bien
Avec le temps…
Avec le temps, va, tout s´en va
L´autre qu´on adorait, qu´on cherchait sous la pluie
L´autre qu´on devinait au détour d´un regard
Entre les mots, entre les lignes et sous le fard
D´un serment maquillé qui s´en va faire sa nuit
Avec le temps tout s´évanouit
Avec le temps…
Avec le temps, va, tout s´en va
Même les plus chouettes souv´nirs ça t´as une de ces gueules
A la gal´rie j´farfouille dans les rayons d´la mort
Le samedi soir quand la tendresse s´en va toute seule
Avec le temps…
Avec le temps, va, tout s´en va
L´autre à qui l´on croyait pour un rhume, pour un rien
L´autre à qui l´on donnait du vent et des bijoux
Pour qui l´on eût vendu son âme pour quelques sous
Devant quoi l´on s´traînait comme traînent les chiens
Avec le temps, va, tout va bien
Avec le temps…
Avec le temps, va, tout s´en va
On oublie les passions et l´on oublie les voix
Qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens
Ne rentre pas trop tard, surtout ne prends pas froid
Avec le temps…
Avec le temps, va, tout s´en va
Et l´on se sent blanchi comme un cheval fourbu
Et l´on se sent glacé dans un lit de hasard
Et l´on se sent tout seul peut-être mais peinard
Et l´on se sent floué par les années perdues
Alors vraiment… avec le temps… on n´aime plus
Léo Ferré
Obrigada pela partilha..
Luna
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Malgré le temps qui passe, ont peut toujours aimer. Léo Ferré n’a pas raison. Obrigado pelo comentário e pelo prazer de ler o poema de Léo Ferré
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..oui..ont peut toujours aimer..
.le feu de nuit dans les mains… dans les corps …dans l âme…
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De noite ou de dia. Para arder de amor não há horas especialmente propícias… viciodapoesia dixit
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