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Visito as páginas do blog com música, perdidas no vasto arquivo que o blog já é, e surge-me o desejo de as voltar a mostrar, sobretudo aos novos leitores que nos últimos meses têm chegado às dezenas. Hoje revisito este texto sobre quartetos de cordas de Beethoven publicado originalmente em Outubro de 2011.

Há dias, de passagem, quando aqui contava a Aventura Polaca, referi os quartetos Razumovsky. É com a sensação de revelar um segredo íntimo que vos falo desta música, para deixar aqui uma interpretação de minha especial afeição.

As composições para quarteto de cordas são conversações sobre o belo e o sublime, e nessa medida, parte essencial da vida de qualquer melómano que as conheça.

Conversas entre dois violinos, uma viola e um violoncelo, como todas as conversas, uns são mais interessantes que outros, e alguns têm o privilégio  de se poderem escutar a vida inteira.

A atenção exigida ao outro, o sublinhar de uma frase musical ecoando-o com nova intenção, a entrada de uma terceira voz e uma quarta, fazendo o assunto musical divergir ligeiramente, depois o regresso ao assunto principal num uníssono de acordo, contêm, quando os interpretes são de primeira, o intenso prazer da pura beleza.

É sempre música sem assunto. Apenas o jogo da melodia ou do contraste importa, criando a atmosfera sonora do mais perfeito equilíbrio.

A primeira vez que reparei num quarteto de cordas e o identifiquei, tendo passado a fazer parte de mim, foi há trinta e muitos anos. Escutava como habitualmente o programa Em orbita, a maior parte das vezes como fundo musical enquanto estudava, quando um clik me fez pôr de lado os livros e fiquei a ouvir.

No final o locutor de serviço ao programa, anunciou a peça. Tratava-se do quarteto de cordas op. 127 de Beethoven, na interpretação do Quarteto Alban Berg.

Durante muitos anos e muitos quartetos ouvidos, as preferências foram mudando e umas paixões dando lugar a outras. No entanto, um conjunto houve que permaneceu e permanece quase como parte de mim. A ele regresso quando reencontrar o sentido da vida se torna necessário. Falo dos três quartetos op 59 de Beethoven, conhecidos como Quartetos Razumovsky.

Embora a minha preferencia não se fique apenas por um deles, e umas vezes estou mais virado para o nº3, outras para o nº1, e tantas vezes para o nº2, fiquemo-nos apenas pelo nº1.

Ao pensar escrever sobre estas maravilhas voltei a ouvi-los detalhadamente, tendo regressado a interpretações que não ouvia há anos. Detenho-me num conjunto de interpretações sublimes, cada qual com as suas peculiaridades e aproximações singulares a estas formas puras de beleza.

Talvez as possa, para facilidade de exposição, arrumar por famílias, encontrando-lhes afinidades estilísticas, que não de escola.

Falemos então, para inicio de conversa da especial sonoridade dos quartetos daquela Europa, pertença do império austro-húngaro até ao século xx, sobretudo checos e húngaros, com a emocionante rugosidade no ataque às cordas dos instrumentos. Ouvi-los transmite uma espécie de arrepio que numa volta ou outra da interpretação nos põe em pele de galinha.

Diferenciam-se estas interpretações pelo tempo e pela dinâmica, transmitindo uma vivacidade especial às interpretações quer as dos checos  Quarteto Pratzak ou Quarteto Talich ou então a interpretação do hungaro quarteto Vegh.

Com um tempero estilístico vindo do classicismo vienense, e parecendo acabado de chegar dos tempos de Haydn, temos o Quarteto Budapeste nas suas duas formações, e que fez escola nos EUA através dos seus herdeiros, o Quarteto Julliard.

Guardiães da tradição vienense temos o Quarteto Alban Berg em qualquer das suas formações, embora em geral prefira as interpretações da primeira formação.

Numa espécie de cruzamento entre as escolas austríaca e checa encontram-se os ingleses do Quarteto Lindsay. Tocando com uma entrega emocional total, vê-los no histriónico da sua interpretação, envolve-nos numa total adesão e mergulhamos na essência mesma desta música.

Chego agora aquela que foi a interpretação primeira e mais duradoura de minha paixão, a do Quarteto Italiano. Combinando a refinada articulação vienense com a paixão  própria do sul, a sua interpretação derrama uma emoção em cada nota que simultâneamente nos comove e euforiza, fazendo encontrar ali, naquela música, o caminho a seguir.

Este quarteto e esta interpretação estiveram no cume das minha preferências até que um dia me cruzei com uma gravação da radio austríaca, feita no final da WWII, a 19 de Março de 1945. Tocava o Quarteto Schneidermann. A atmosfera de entendimento e concórdia destilada pela interpretação do primeiro dos quartetos op. 59 levou-me a um completo êxtase. É ainda hoje a minha escolha primeira sobre qualquer das interpretações que atingem a excelência e que felizmente alguém gravou para nosso prazer e memória.

No seu estilo eram sem rival e inimitáveis… A sua execução  não conhecia quaisquer problemas técnicos, nem de outra natureza. Harmonia e beleza de som eram soberanas. Da sensual opulencia sonora  do conjunto, faziam suave música, quais sonâmbulos mergulhados em doces sonhos despreocupados das perigosas alturas onde se moviam. Mais ou menos isto escrevia um critico vienense, Hans Wiegel, a proposito do Quarteto Schneiderhan em 1961, quase uma década depois de o quarteto se ter dissolvido.

Na impossibilidade de facultar a algum interessado a audição de todas as gravações que referi (se algum pretender detalhes pode perguntar por e-mail), deixo esta interpretação do Quarteto Schneidermann. Possa algum leitor/ouvinte sentir o milagre que me aconteceu, espero!

Op. 59 nº1:  1 – Allegro

Op. 59 nº1:  2 – Allegretto vivace e sempre scherzando

Op. 59 nº1:  3 – Adagio molto e mesto

Op. 59 nº1:  4 – Allegro