Etiquetas
Na poesia de Alexandre O’Neill (1924-1986) o sarcasmo tem presença frequente, e se um corrosivo humor cruza quase toda a sua poesia, o poeta foi por vezes capaz de comovente ternura por alguns desamparados, qual este Ana Brites, Balada tão ao gosto português.
Ana Brites, Balada tão ao gosto português
Ana Brites, a coitada,
está no seu canto, enfartada,
a brancura do cabelo
na brancura da almofada,
a roupa da cama, pois,
bem dobrada e alinhada.
Ana Brites, camponesa
do fundo de Portugal,
com um tubo no nariz,
não pensa nem bem nem mal,
vê imagens, as da vida,
que até agora viveu,
vê a Castanha, a vaquinha,
o que no eido ocorreu,
vê-se em pequena, sozinha,
por esses montes, além,
caminho das letras gordas
também das quatro operações,
vê-se já em rapariga,
a alfinetar corações.
Vê o primeiro que pôs
rumores no seu coração,
um moço de grande lábia
sempre alegre e espertalhão.
Vê aquele que a levou,
por uma vez ao altar,
e vai, no seu corpo entrou,
como na casa o ladrão,
para a deixar com um filho
que é a sua devoção.
Ana Brites, a coitada,
sente, às vezes, a dor fina.
Apetece-lhe gemer,
mas é muito envergonhada,
além de não ser menina.
É então que uma senhora,
branca, de sorriso doce,
aparece em boa hora,
põe-lhe a mão no peito murcho
e vai-se embora só quando
a dor fica aliviada.
Ela não sabe quem é,
mas por seu bem ou seu mal,
habituou-se a chamar-lhe:
Senhora do Hospital.
O poema foi transcrito de Alexandre O’Neill, Poesias Completas 1951/1986, 3ª edição revista e aumentada, INCM, Edição do Dia de Portugal, 10 de Junho de 1990.