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Com uma enorme vénia ao editor pelo imenso prazer proporcionado com a leitura de tanta ignorada poesia portuguesa dos séculos XVII e XVIII, que o seu trabalho tem revelado, transcrevo este folguedo escatológico, como lhe chamou.

UM PEIDO ALFABÉTICO em verso, datado de 1710

Transmitido por três testemunhos manuscritos e anónimo em todos eles, … a  paródia  começa  por  se  revelar  ao  nível  dos  elementos paratextuais,  a  começar  pelo  cólofon:

«Com  licença  da  Câmara,  à  custa  da Limpeza»;

«Impresso em certa parte, na Oficina Secreta».

Também o desenho e o acróstico sublinham de imediato esta vertente subversiva do poema, apoiada num humor  por  vezes  bastante  feliz:

«É  Entendido porque  tudo  o  que  se  lhe  ouve  é muito fundo e ninguém lhe sabe responder com palavras».

Mas  a  parte  mais  interessante  da  obra  é,  sem  dúvida,  o  ABC,  que  adopta  a forma da oitava-rima. Cada estrofe é uma acumulação de sinónimos metafóricos, justificados de forma muito sucinta.

Peido Alfabético definido e explicado por um Mestre de Meninos de Lisboa

Para todos os autores que escreveram sobre a regra do ABC

Com licença da Câmara, à custa da Limpeza

Parte 2.ª

No ano de MDCCX

Impresso em certa parte, na Oficina Secreta

Tem o Peido em cada uma das letras do seu nome a melhor prova das suas virtudes, e em cada uma das suas virtudes se prova toda a grandeza do seu nome.

É Prudente porque ninguém o ouve diante de pessoas de autoridade; recolhe a prosa e, quando muito, larga pela boca pequena  algum  suspiro  ou  bocejo,  que  mal  o  percebem  os ouvidos,  ainda  que  o  entendam  os  narizes.

É  Entendido porque tudo o que se lhe ouve é muito fundo e ninguém lhe sabe responder com palavras.

É Inteiro porque ninguém o viu partido e porque se não sabe desdizer tanto que chega a falar.

É Desinteressado porque sempre dá, e de tal sorte que se dá a si mesmo.

É Orgulhoso porque finge várias formas para não ser   conhecido,   e   para   o   seu   intento   sai   quase   sempre disfarçado; com tudo se parece, mas nada o iguala, e melhor o louva a seguinte quintilha acróstica:

Para todos é igual
Este que Peido se chama.
Juntamente é bem e mal;
Dele corre boa fama
Onde se sabe o que vale.

Para quem ler

Com licença das barbas dos Leitores,
Veremos no Alfabeto, pois nos toca,
Que cousa é Peido e todos seus Louvores,
Para com isto se tapar a boca
A alguns reverendíssimos autores,
Cuja arrogância a tanto nos provoca;
Porque as sinificações que dão à vida
No nosso Peido têm melhor saída.

Ao seu discurso muito pouco deve
Quem mostra no ABC que é erudito
E que estas letras são as de que escreve,
Sendo assunto comum e infinito.
Responder aos seus livros bem se atreve
Qualquer rapaz dos meus, e por escrito!
Mas porque logo aqui se lhe responda,
O Peido também tem letra redonda.

Se no Peido consiste a nossa vida,
E se a vida do Peido é dependente,
Faltou a vida em Peido definida,
Que o Peido à vida é mais conveniente.
A vida é Peido se não tem saída,
O Peido é vida quando sai contente,
E pelo Peido a vida é, num instante,
Por detrás Peido, e vida por diante.

Argumento da Obra

A B C D E F G H I L M N O P Q R S T V X Z

A
É o Peido natural de que tratamos,
Para prova de tudo que dizemos,
Árvore de que os traques são os ramos,
Átomo tal que só com um olho o vemos;
É Ave que sem tiro não caçamos,
Abismo em que de riso nos perdemos,
Água de trovoada, e é Aurora
Que por um olho mesmo ri e chora.

B
É Banquete de cousa já comida,
Posto que os pratos sejam mal cheirosos,
É Bainha em que sempre vai metida
A espada dos narizes mais mimosos;
É Barranco em que certa está a caída,
É Baile de instrumentos, mas ventosos,
Em que todo o rojão é de assobio;
É Barro, porém Barro de Bacio.

C
É Cárcere em que tudo são fedores,
Cítara que apertada desafina,
É Carreira em que atrás vão os maiores,
É Casa em que ninguém co’a porta atina,
E fogem dela os mesmos moradores;
É Cana que com o vento abaixo inclina,
É Censura entre gente bem criada
E é Carga em todo o ventre bem pesada.

D
É Desterro cruel dos circunstantes,
Depósito fiel de todo o flato,
Demarcação das nalgas mais distantes,
Delírio do besbelho mais sensato;
Desacordo de quem dormia dantes,
Desafio da voz de qualquer gato,
Quando de dentro saï com voz cheia
E apertada no cu fica co’ meia.

E
É Espelho de vidro embaciado,
É Espinho que as almorreimas pica,
Engodo para quem não tem cursado,
Empréstimo que em casa sempre fica,
Estio quando é seco ou vem molhado,
Estopa que arde e o fogo não publica;
É Estrela de rabo, ou é cometa,
Mas a sua influencia é mais secreta.

F
É Fábula que finge voz humana,
A quem já venerou a Antiguidade,
Folha que de papel rasgada engana,
Fio podre que quebra de humidade;
É Flor que pelo cheiro desengana,

Faísca a que qualquer ventosidade
Faz acender, e é Feno que arde logo;
É Fantasma sem ser, Fumo sem fogo.

G
É Galé quando dentro está forçado,
E se acaso se solta sai fugido;
É Guerra em que o nariz é o soldado,
Só do fumo da pólvora vencido;
Girândola de fogo tão calado
Que se acende depois de ter ardido;
É Grimpa de tão fácil movimento
Que aponta aqui e ali com todo o vento.

H
Hospedagem de pobres quando há frio,
Hospital, mas é só dos enjeitados;
É Hora de cagar dada em bacio,
Que tem quartos traseiros e atrasados,
Horror porque o lugar é mui sombrio;
É História de casos engraçados,
Porque faz rir e acaba com estouro,
Holocausto, pois saï como um touro.

I
É Íris que aparece em trovoada
Por sinal de bonança aos flatulentos,
Incêndio cuja chama já apagada
Ainda faz fugir aos mais nojentos,
Inverno em tempestade desatada,
Porque sempre debaixo são os ventos,
Jogo do cu e Ironia, se bem noto,
E Imagem verdadeira de um arroto.

L
Labirinto se há muitos circunstantes,
Porque ninguém acerta com a saída;
É Lua que também tem seus minguantes,
É Laço em que afogar-se pode a vida,
Luz cujo morrão fede aos mais distantes;
É recolhido às tripas grande Lida,
É Luto, pois talvez chora no cabo
E também porque [sempre] sai de rabo.

M
Manhã que quase sempre traz orvalho,
Miséria quando a fralda se salpica;
É Moinho de vento sem trabalho,
Maná que em tudo fede em má botica;
É Música que canta por atalho,
Mas dos papéis a letra não explica;
Na pressa com que saï é Momento,
E a toda a parte corre como vento.

N
É Nau que sai das costas com tromenta
E largando os traquetes faz viagem;
É Noute que fantasma representa,
É Névoa de que só faz mal a aragem,
É Nuvem negra, como se exp’rimenta,
Porque lança trovões, mas de passagem;
Neve, mas de sorvete ou limonada,
E porque é ar o Peido, o Peido é Nada.

O
Do Sol da Índia o Peido é Oriente,
E por isso não luz neste Orizonte;
Lá debaixo aos Antípodas é quente,
Porque nasce entre um e outro monte;
Órgão que vaza o vento de repente,
Sem que ninguém o tanja nem aponte;
É Outono no muito que semeia
E é Orvalho se o cu tem diarreia.

P
Primavera de mal cheirosas flores,
De várias tintas é fresca Pintura,
Porque borradas se lhe vêm as cores;
É Pomo que apodrece e podre dura,
Porta que abrem Senhoras e Senhores,
Roncando-lhe a couceira e fechadura;
Péla que o vento vaza, mas no cabo
É Pó que se levanta e Pó Diabo.

Q
Questão entre os narizes e os ouvidos,
Mas sempre o nariz prova a consequência;
É Queixa porque se ouvem os gemidos,
É Queda que evitar pode a prudência,
Mas mais perigo têm os mais sofridos,
Pois no Peido também há continência;
Se há peleja ou revolta na barriga,
É Quitação que as tripas desobriga.

R
É Rio, porém Rio de Cuama,
Que de um olho entre montes nasce e corre
E por suas cascatas tem mais fama,
Mas não pode saber-se adonde morre;
É Raio que nos altos mais se inflama,
É Relógio que cursa e mais discorre,
É Roda, mas de traques Roda viva,
É Rosa, mas é Rosa purgativa.

S
É Seta que voando fere e mata,
É Sono porque ronca fortemente,
É Sonho de cagar sem patarata,
É Sombra porque assombra a muita gente,
Silogismo sutil que se desata
E que se prova logo em continente;
É Sumário de crimes muito atrozes,
É Solfa porque faz todas as vozes.

T
É Teia que se rasga, cujo pano
Tem só para fundilhos serventia;
Teatro em que as figuras são engano,
Transformação que faz a fantesia;
É Trânsito perciso a todo o humano,
É Tragédia que tem a Poesia,
De verso solto menos elegante,
Porque Peido não acha consoante.

V
É Vestido que em todo o corpo ajusta
E de todo o nariz sai à medida,
Vapor do cu que com o fedor assusta,
Vidro que para copo se convida,
Vento cuja tormenta muito custa,
Voz em todas as línguas entendida;
E para desengano da verdade,
É o Peido das tripas Vaidade.

X
É Xara porque corre velozmente,
É Xadrez, jogo só [de] desenfado,
E lhe quadra este jogo propriamente
Porque o Peido de estômago danado
É Rei, a Bufa Dama, e juntamente
Os traques são Peões, e está ganhado
O jogo só com o Xaque aos circunstantes,
Pois sem esperar mate fogem antes.

Z

Zizânia de visitas em estrado,
Onde a dúvida faz desconfiança,
Pois negando que é seu quem o tem dado,
Na roda se enjeitou como criança;
É Zunido ao nariz que causa enfado,
Zombaria que não se estranha em França,
Zodíaco que os sinos toca em cheio,
E é Zona que o cu parte pelo meio.

Noticia Bibliográfica:

Consta o poema Peido Alfabético definido e explicado por um Mestre de Meninos de Lisboa da publicação FOLGUEDOS ESCATOLÓGICOS INÉDITOS DO SÉCULO XVIII — Versos de Entrudo em metáforas fedorentas, uma Peidorrada e três Peidologias, editado pelo Professor Francisco Topa, em Edição do Autor, em 1998, no Porto.

Nesta transcrição suprimi a noticia das variantes assinaladas pelo editor, e respeitando às 3 diferentes versões manuscritas de que o autor refere a existência.