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Sabemos quem somos quando atentamos no que gostamos, sobretudo no que gostamos de comer. É algo que todos os dias fazemos e onde procuramos prazeres repetidos.
O que eu gosto de figos, meu Deus, e de uvas, e de mel, e de tâmaras, e de amêndoas, e a lista não acaba.Sou decididamente uma criatura do sul. Contemplo o branco e o azul na paisagem e descubro aquela harmonia do mundo que faz sentir qual é o lugar a que pertencemos.
E o mundo é um lugar de prazeres inesperados ainda que viver seja cruzar um deserto de morte, como diz o nosso poeta de hoje.
Desculpo-me da longa ausência junto dos fiéis leitores de blog que não desarmaram perante o demorado silêncio e espero apreciem o que hoje aqui deixo.É a memória da minha, talvez, costela árabe a falar.
São poemas luso-árabes anteriores à conquista cristã, e abro com o meu conterrâneo, ABÛ ‘UTHMÂN, nascido em Tavira provavelmente ao aproximar de 1200, pois em 1229 com a conquista de Aragão pelos cristãos, retirou-se para Minorca e aí fundou um pequeno reino cuja corte funcionou como um cenáculo literário.
O assunto do poema é a eterna guerra entre o sexo e intelecto, ou pelo menos o coração puro empenhado no bem fazer.
Talvez para o nosso poeta o gosto do sexo seja incompatível com o bem fazer. Será?
como são bizarros certos reis,
transformados em escravos do prazer.
apenas desejam duas coisas:
bocetinhas e bocas de mulher!
se o espírito mais lhes interessasse,
poriam de lado a fornicação
fruindo no amor puro a união.
passa o tempo, continuam reis do mundo:
oxalá que eles passem num segundo!
se viver é cruzar um deserto de morte
aborrecer tais prazeres é o meu norte.
o meu fito neste mundo
é apenas ter puro o coração:
assim o guardo da corrupção
na via do Bem profundo.
Ainda que pudesse ficar por aqui, não resisto a acrescentar a presença do grande AL-MU’TAMID, nascido numa família de poetas em Beja em 1040.
Tendo governado Silves, ocupou o trono de Sevilha em 1069, de onde foi destronado e exilado para o interior de Marrocos, vindo aí a morrer na miséria.
Deste infortúnio extraiu elegias de grande beleza e é ainda hoje objecto de homenagens no seu túmulo em Aghmat.
Começo com um belo retrato de uma mulher amada:
um sol é seu rosto / e palmeira é ela / de ancas opulentas. …
em encanto não tem / rival tal senhora, / e, fora do sonho, / quem tão bela fora?
Pretendendo o nosso poeta o costume, lançou o convite:
dá paz ao ardor / de quem te deseja. / contenta o amor / e faz dom de ti, / vamos, sorri, / quando a boca beija.
Respondeu-lhe a bela, olhos de gazela e corpo de palmeira:
pecar me refreia
Mas o nosso poeta não se calou:
respondi-lhe: ora, / não é coisa feia!
Afinal o receio de pecar deve ter sido apenas negativa a dizer que sim, pois a seguir parece que:
uma vez era noite / de bem longa festa.
e a bela nem deixou o poeta dormir como lhe apetecia.
Talvez o nosso poeta fosse daqueles homens que, acabado o sexo e já quase ressonam, quem sabe?
E agora chega de conversa, aí vai o poema.
0
quem vive dos ardis da ilusão
e, assim, se aparta do amigo
poderá encontrar consolação?
I
quando será que estarei
livre de desdém tão fero
cujos fortes esquadrões
me dão guerra que não quero.
desvio, assim, é injusto.
juro pela luz altaneira
que em suas tranças se divisa:
não sou cobra traiçoeira
das que mudam de camisa.
II
de negras madeixas
amo uma gazela
um sol é seu rosto
e palmeira é ela
de ancas opulentas
existe em seus lábios
do néctar o gosto.
ó sede se intentas
sua boca beijar
não o vais lograr.
III
em encanto não tem
rival tal senhora,
e, fora do sonho,
quem tão bela fora?
qual espada seus olhos
lhe brilham e rosas
lhe enfeitam a face
na sombra vistosas
mas se as vais olhar
fá-la-ás murchar.
IV
dá paz ao ardor
de quem te deseja.
contenta o amor
e faz dom de ti,
vamos, sorri,
quando a boca beija.
me disse na hora:
pecar me refreia
respondi-lhe: ora,
não é coisa feia!
V
uma vez era noite
de bem longa festa.
adormeci. me disse
me acordando com esta:
teu sono vai longo
toca a levantar!
então me beijou
e eu pus-me a cantar:
fazem reviver
teus lábios a arder! [que lábios serão?]
Termino com esta bela declaração de amor na distância da amada.
Invisível a meus olhos,
trago-te sempre no coração
Te envio um adeus feito paixão
e lágrimas de pena com insónia.
Inventaste como possuir-me
e eu, indomável, submisso vou ficando!
Meu desejo é estar contigo sempre,
oxalá se realize tal vontade!
Assegura-me que o juramento que nos une
nunca a distancia o fará quebrar.
Doce é o nome que é o teu
e aqui fica escrito no poema: ‘Itimad.
Noticia bibliográfica: os poemas e as notas biográficas foram retirados da antologia “O meu coração é árabe” da responsabilidade de Adalberto Alves, e publicada pela Assírio & Alvim em 3ªedição revista e aumentada em 1999.
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