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METEMPSICOSE
Ardentes filhas do prazer, dizei-me!
Vossos sonhos quais são, depois da orgia?
Acaso nunca a imagem fugidia
Do que foste em vós se agita e freme?
Noutra vida e outra esfera, aonde geme
Outro vento, e se acende um outro dia,
Que corpo tínheis? Que matéria fria
Vossa alma incendiou, com fogo estreme?
Vós fostes, nas florestas, bravas feras,
Arrastando, leoas ou panteras,
De dentadas de amor um corpo exangue…
Mordei pois esta carne palpitante,
Feras feitas de gaze flutuante…
Lobas! Leoas! Sim, bebei meu sangue!
Sem que o comércio venal seja explicitamente referido, há um amor despido de sentimento neste soneto de Antero de Quental (1842-1891) que permite supor as Ardentes filhas do prazer como as damas de aluguer de Camões, aqui vistas como devoradoras fêmeas selvagens, lobas ou leoas, bravas feras arrastando… de dentadas de amor um corpo exangue, ainda que vestidas com o requinte da gaze flutuante de alcova.
O poeta recusa-lhes origem humana, daí chamar ao soneto METEMPSICOSE, transmigração da alma de um corpo para outro.
E o nosso autor pergunta Que corpo tinheis? depois de já se ter interrogado: Noutra vida, noutra esfera, que matéria fria vossa alma incendiou, com fogo estreme?
Deixadas as perguntas, ao homem que o poeta é, apenas o desejo e a orgia importa, e grita:
Mordei esta carne palpitante, bebei meu sangue!
Acalmada a carne, surge o intelecto e a reflexão, e com eles o poema e a interrogação a abrir: Ardentes filhas do prazer, dizei-me! Vossos sonhos quais são.
Não direi que estamos perante a velha história do cliente inexperiente que, depois de satisfeito, se interessa pela vida da prostituta enquanto pessoa, num rebate sincero de simpatia humana. Direi antes que estamos perante a perplexidade eterna da razão face à força da carne para fazer valer os seus direitos.
Força essa transmitida no poema por vocábulos como feras, dentadas, exangue, sangue, num resultado poético global em que a precisão da forma se alia à concisão do soneto, sem paralelo na poesia portuguesa.
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